A natureza sempre foi um meio para se comunicar com o Criador; qual espelho, ela permite ao homem vislumbrar algo da beleza incriada.

Tomando como exemplo o firmamento, com a variedade de nuances que contemplamos desde a aurora até o ocaso, notamos que ele oferece um quadro encantador: a seriedade da alvorada, cheia de força e majestade em seu colorido, atinge uma gloriosa plenitude no fulgor do meio-dia e, em seguida, escurece lentamente nas tristezas do crepúsculo.

Há assim, ao longo do dia, uma harmoniosa sucessão de aspectos, do prelúdio ao apogeu e deste ao declínio, num processo de desenvolvimento e retrocesso. Trata-se de um espetáculo a nós concedido diariamente pela bondade d’Aquele que nos ama com dileção infinita: Deus!

Para um espírito católico – admirativo e restituidor –, esse ciclo de múltiplas configurações que o céu percorre assemelha-se a um relógio, o qual oferece elementos para compreendermos a alma humana em suas várias disposições. Com efeito, esta apresenta matizes particulares quando analisada pelo prisma de sua relação com o Criador.

Ao meio-dia, o amor domina!

Há um “horário” na vida espiritual em que tudo está claro, análogo ao que se passa no firmamento quando o sol atinge seu zênite.

A inocência se apresenta com fulgor, e a pessoa irradia aos demais o amor divino do qual provou, na reta intenção de fazer o bem, como é próprio ao inocente. As luzes divinas coruscam de tal forma que “a alma, então, mais parece Deus que ela mesma, e se torna Deus por participação”…[1]

Encontrando-se com almas “sombrias” pelos efeitos do pecado, sua caridade as ilumina e seu calor infunde-lhes novo vigor, recordando que pela contingência humana não conseguiremos admirar o “dia” sem um auxílio externo.

Nesta hora dominada pelo amor, “a luz de Deus e a da alma se identificam numa só”,[2] realizando prodígios de virtude e santidade: é o “meio-dia” da vida interior!

Mas o sol não fica a pino eternamente… O dia prossegue o seu curso, os ponteiros percorrem os minutos do relógio, e o tempo passa. O interior do homem também tem ocasos, cuja beleza não pode nos passar despercebida.

À tarde, o horário das saudades…

Aproxima-se o fim da tarde. Imaginemos que são dezoito horas. O astro rei se despede numa feérica apresentação, onde a cor, a luz e o movimento da abóbada celeste permitem ao homem recordar, com saudades, a “infância querida que os anos não trazem mais”…[3]

São saudades do convívio marcado pela alegria primaveril da vida espiritual que, maravilhado, todo homem teve um dia a felicidade de desfrutar, à semelhança de Adão no Jardim do Éden antes de macular sua alma com o pecado.

É bem provável que, nesse “horário” da existência, o dourado da inocência tenha cedido lugar ao brilho prateado da restauração, deixando o sol esconder-se por entre espessas nuvens…

Ainda que não seja possível contemplá-lo no horizonte, a alma deve crer que o amor divino permanece imutável: “Deus está como que por detrás das nuvens, olhando e por assim dizer dosando com misericórdia o temor que aquela alma deve ter para se restaurar”.[4] Então, para que veja novamente sua luz, será preciso, às vezes, reconciliar-se com Ele através do Sacramento do perdão.

Ao anoitecer soa o momento das confidências entre Criador e criatura, da doce tristeza que a lembrança da manhã traz à alma. É o horário do agrado mudo, da despedida envolta na suavidade do ocaso.

Longe de fazer a alma abandonar a luta, o crepúsculo a prepara para os embates que virão, pois quem aspira à união com Deus, “não pode deitar-se a dormir”.[5] O coração pede, então, para ser provado por Aquele de quem tudo recebeu… É justo!

Na escuridão da noite, a prova da fidelidade

Assim, o nobre colorido do entardecer vai cedendo lugar ao esplendor régio da noite que, cuidadosamente, cobre o firmamento com seu véu negro repleto de brilhantes.

Nesse gesto de respeitosa submissão, o sol nos revela o quanto as renúncias e dificuldades acrisolam o amor, convidando a inocência ao sacrifício, a fim de conservar na alma os encantos da infância espiritual.

Deus imerge na noite escura “aqueles que quer purificar de todas essas imperfeições, e levar adiante”.[6] Retira sua luz admirável, enquanto esclarece a alma “dando-lhe a conhecer não somente a própria miséria e vileza, mas também sua divina grandeza e excelência”.[7]

Sem outra luz nem guia além da que lhe abrasa o coração,[8] a alma amadurece e adquire uma relação estável no convívio com Deus, pois a prova a dispõe para o reencontro que virá: “É bem pouco tudo quanto pudermos fazer e padecer em seu serviço, para nos prepararmos a graças tão sublimes”.[9] Por isso São João da Cruz exclama, cheio de fervor: “Resulta em grande luz o padecer trevas”![10]

A alma procura seu Senhor, mas não O encontra e, recusando toda consolação, sua lembrança lhe faz gemer o coração (cf. Sl 76, 4)… Volta-se para Ele em seu interior, busca-O ali onde estão guardadas as esperanças do albor e distingue-Lhe os passos na cintilação das estrelas, pois também é indispensável admirar a ação da graça divina nos demais.

Por vezes acontece ao homem desesperar, sentindo-se abandonado em meio às densas trevas da provação, característica desta fase espiritual. Contudo, ele não deve esquecer que, quanto mais “escura” for a noite, mais próximo estará o amanhecer!

No despontar da aurora, o prêmio da perseverança

Após os duros embates da desolação interior, a luz da alma fiel se levantará na escuridão e sua noite resplandecerá como o dia pleno (cf. Is 58, 10).

Desapegada das afeições terrenas, ela está apta para receber uma vez mais a luz da união divina,[11] que virá no amanhecer. Então comprovará que, se perseverou, foi porque Deus a amou primeiro (cf. I Jo 4, 19)!

Roguemos, pois, a Maria Santíssima, Mãe do Belo Amor, que nos ensine a restituir esse amor que recebemos, ainda quando nossos sentimentos bradem o contrário…

E aguardemos com esperança o despontar de uma gloriosa aurora, início da era histórica na qual Ela será inteiramente conhecida e amada “desde o nascer ao pôr do sol” (Sl 112, 3): o Reino de Maria!

 

 

 

Notas
[1] SÃO JOÃO DA CRUZ. Subida do Monte Carmelo. L.II, c.5, n.7. In: Obras Completas. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p.198.
[2] SÃO JOÃO DA CRUZ. Chama viva de amor. Canção III, n.71. In: Obras Completas, op. cit., p.914.
[3] ABREU, Casimiro de. Meus oito anos. In: As primaveras. 2.ed. São Paulo: Martin Claret, 2018, p.44.
[4] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. “Salva-me, Senhor, pela tua misericórdia”. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano VIII. N.88 (jul., 2005); p.13.
[5] SANTA TERESA DE ÁVILA. Castelo Interior ou Moradas. Quintas Moradas, c.4, n.10. São Paulo: Paulus, 1981, p.129.
[6] SÃO JOÃO DA CRUZ. Noite escura. L.I, c.2, n.8. In: Obras Completas, op. cit., p.446.
[7] Idem, c.12, n.4, p.475.
[8] Cf. Idem, L.II, c.25, p.571.
[9] SANTA TERESA DE ÁVILA, op. cit., p.129.
[10] SÃO JOÃO DA CRUZ. Epistola a Catarina de Jesus, carmelita descalça, 6/7/1581. In: Obras Completas, op. cit., p.938.
[11] Cf. SÃO JOÃO DA CRUZ. Subida do Monte Carmelo. L.I, c.4, n.2, op. cit., p.148.