O mar, essa maravilhosa criatura de Deus, apresenta em seus variados estados – ora aprazível, sereno e até jovial, ora majestoso ou terrível em suas tempestades – uma semelhança com a História da Igreja.

Desde suas origens, vem esta passando por períodos de calma e de tormentas, sendo mais numerosas estas últimas…

Com frequência a Nau de Pedro enfrentou o embate de espantosas borrascas que levavam a recear um soçobro.

Entretanto, estava realmente em seu comando o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, graças ao qual ela não só superou todas essas furiosas investidas, como delas saiu mais gloriosa, pura e santa.

O episódio sobre o qual nos deteremos neste artigo retrata uma dessas grandes tormentas. Uma heresia que se avolumava dia a dia, ameaçando sua unidade e pondo em perigo a salvação de muitas almas.

Uma questão doutrinária que apaixonava o povo

Calcedônia, atual Kadiköy, situa-se na Turquia, em frente a Bizâncio.

No ano 451 reuniram-se nessa então pequena cidade do Império Bizantino 600 Bispos, legados pontifícios, teólogos e religiosos, para um importantíssimo acontecimento: o IV Concílio Ecumênico da História da Igreja. 

O ambiente da cidade era efervescente.

Verificava-se naqueles tempos no Oriente um fenômeno muito especial: as questões religiosas – sobretudo as disputas entre as duas grandes escolas teológicas da Antioquia e de Alexandria – apaixonavam o povo, suscitando discussões e polêmicas; formavam-se partidos de apoio a uma ou outra corrente e por vezes as disputas doutrinárias degeneravam em violência…

Ora, desde o Concílio de Éfeso, realizado em 431, travava-se de uma polêmica sobre um relevante tema teológico: as duas naturezas de ­Jesus Cristo.

A corrente herética defendia a tese de que a natureza humana de Cristo fora assumida pela natureza divina, como que absorvida ou aniquilada por esta.

Segundo alguns de seus seguidores, o fenômeno de absorção de uma natureza pela outra dava lugar a uma nova e especial natureza, a divina-humana; de acordo com outros, a divindade havia entrado em composição com o corpo de Cristo. Daí o nome dessa heresia: monofisismo (mono physis: uma natureza).

Seu principal representante foi Eutiques, arquimandrita de um grande mosteiro de Constantinopla, o qual havia interpretado mal os ensinamentos de São Cirilo de Alexandria, especialmente estas palavras: “uma natureza do Verbo de Deus encarnada”.

Naqueles tempos, como a linguagem teológica ainda não estava totalmente afinada, esta formulação podia dar margem a confusões. Eutiques sustentava com radicalidade que

a humanidade e a divindade formavam em Cristo uma só natureza, a divina.

Uma metáfora habitual entre os monofisitas mostra até que ponto, na cristologia eutiquiana, desaparecia a natureza humana de Cristo: em Cristo, a humanidade se dissolve na divindade como uma gota de água doce no oceano salgado.1

Os propugnadores da ortodoxia, ao contrário, reafirmavam a doutrina da existência de duas naturezas em Nosso Senhor, a divina e a humana.

Um varão providencial: São Leão Magno

A corrente heterodoxa difundiu-se rapidamente, sobretudo no Egito, onde tomou o aspecto de uma religião nacional.

Eutiques obteve de imediato o apoio de Dióscoro, Patriarca de Alexandria, e a eles se uniu o eunuco Crisafio, o qual exercia enorme influência sobre o imperador Teodósio e a imperatriz Eudóxia.

Com tal apoio, o movimento monofisita adquiriu grande força no Império.2 

Mas, Nosso Senhor Jesus Cristo vela sempre pela unidade e santidade de sua Igreja.

E é uma constante nos “hábitos” de Deus – se assim se pode dizer – que nos momentos de crise da Igreja Ele suscita almas providenciais, com carismas e graças especiais, para assistir o povo fiel. 

Assim, ergueram-se contra o monofisismo insignes varões para defender o rebanho de Cristo.

Destacaram-se, no Oriente, Teodoreto de Ciro, Eusébio de Dorileia e Flaviano, Patriarca de Constantinopla, conhecido por sua santidade, fidelidade à ortodoxia e ciência teológica. Sobretudo, governava então a Igreja um Papa de alma de fogo, São Leão Magno (440 –461).

Caracterizou-se este Papa por defender as prerrogativas da Igreja. Lutou contra muitas desordens e heresias na Igreja do Ocidente.

Destacou-se também por sua homilética sapiencial. Especialmente memorável, porém, foi seu encontro com Átila, no qual dissuadiu esse chefe bárbaro de invadir Roma.

Na qualidade de Vigário de Cristo e Sucessor de Pedro, apresentou-se ante o terrível chefe dos hunos, o qual até então nada conseguira deter, e com sua simples presença o atemorizou de tal maneira que este fez meia volta e escolheu outras regiões para continuar suas conquistas.

Também na questão dos monofisitas São Leão interveio com decisão e sabedoria, sobretudo por meio de sua famosa Carta a Flaviano, uma notável obra teológica que estabeleceu as bases do dogma cristológico.

Nesse documento o Santo Pontífice desdobra toda uma teologia da Encarnação.

Afirma a integridade das duas naturezas – divina e humana – unidas numa só Pessoa: Jesus, no qual a majestade acolheu a humildade, a fraqueza foi recebida pela força, o perecível abrigou-se no imperecível.

Para resgatar o gênero humano perdido pelo pecado, a natureza impassível uniu-se à natureza sofredora. Em síntese, Cristo possui uma natureza humana igual à nossa e uma divina idêntica à do Pai.

O Latrocínio de Éfeso e o Concílio de Calcedônia

Eutiques e Dióscolo não aceitaram os ensinamentos do Papa e convenceram o imperador a convocar um sínodo geral em Éfeso, com o qual esperavam obter o triunfo da heresia e o desterro dos defensores de Roma.

Realizou-se dito sínodo em 449, num ambiente de grandes tensões e com cenas de violência por parte de Eutiques e seus monges, auxiliados por soldados imperiais.

Num verdadeiro ato de força que hoje se poderia denominar “golpe de estado”, os comparsas de Eutiques aprovaram a doutrina segundo a qual Cristo tinha só a natureza divina.

Numa reação imediata, o ­Papa Leão Magno qualificou a assembleia de Éfeso de “latrocínio” (latrocinium) e com esse nome passou para a História.

A realização desse “sínodo de bandidos” e o apoio do imperador à heresia levaram a um ponto crítico a tensão entre o Império e a Santa Sé.

Contudo, os monofisitas não contavam com a intervenção de Deus.

Uma série de mudanças produzidas no Império reverteram a situação em favor da Igreja: o eunuco Crisafio perdeu seu poder e influência, o imperador morreu de modo inesperado numa queda de cavalo, a imperatriz Eudóxia retirou-se da corte.

Herdou então o trono a irmã do imperador, Pulquéria, a qual fizera voto de virgindade e sempre dera inteira adesão à ortodoxia.

E como uma mulher solteira não podia ser imperatriz, propôs casamento ao general Marciano, com a condição de este respeitar seu voto. Ele aceitou, casou-se com ela e assumiu o Império.

Essa mudança de situação levou o Sumo Pontífice a estimular o novo imperador a convocar um Concílio. Realizou-se este em Calcedônia, no ano 451.

A convocatória feita pelo soberano despertou enorme interesse tanto no bloco dos homens ­fiéis ao Romano Pontífice quanto nas hostes monofisitas.

Prova disso é o grande número de participantes: mais de 600. Ambas as partes percebiam que a balança se inclinara para o lado da fidelidade e da ortodoxia católica.

“Pedro falou pela boca de Leão!”

Dióscoro, acompanhado por dezessete Bispos, compreendeu que a partida estava perdida e intentou um disparatado golpe de audácia: propôs a condenação do Papa São Leão Magno.

Como não podia deixar de ser, tal proposta resultou num estrondoso fracasso.

Eusébio de Dorileia fez uma acusação formal ao monofisismo. Dióscoro e Eutiques foram depostos de seus cargos e condenados, junto com todos os seus seguidores.

Depois de encerrada a primeira e agitada sessão, o Concílio encetou seu trabalho doutrinário e analisou com devoção a Carta a Flaviano – a “Epístola Dogmática” do Papa Leão –, a qual despertou nos Padres Conciliares um tal entusiasmo que todos, postos de pé, ­exclamaram: “Esta é a fé dos Apóstolos. Assim o cremos todos. Pedro falou pela boca de Leão!”.3 

Em sua quinta sessão, o Concílio de Calcedônia definiu o dogma da união hipostática de Cristo:

Na linha dos Santos Padres, ensinamos unanimemente a confessar um só e mesmo Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito em divindade e perfeito em humanidade, o mesmo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, composto de uma alma racional e de um corpo, consubstancial ao Pai segundo a divindade, consubstancial a nós segundo a humanidade, “semelhante a nós em tudo, com exceção do pecado”; gerado do Pai antes de todos os séculos segundo a divindade, e nesses últimos dias, para nós e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, Mãe de Deus, segundo a humanidade.

Um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho Único, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem confusão, sem mudanças, sem divisão, sem separação.4 

O Concílio Ecumênico de Calcedônia, por Vasily Surikov - Museu Russo, São Petersburgo

Uma nuvem no horizonte da Igreja

Estava, assim, condenada a doutrina monofisita. Dióscoro perdeu todos os seus direitos eclesiásticos. Seus seguidores foram aceitos novamente na Igreja, mediante prévio reconhecimento da Epístola Dogmática.

Revestiu-se de especial solenidade a sexta sessão, presidida pelo casal imperial, Pulquéria e Marciano. Após a leitura do Símbolo da Fé, o imperador dirigiu aos Padres Conciliares um eloquente discurso, no qual manifestava seu desejo de paz para o Império.

Uma nuvem, porém, veio toldar o horizonte. Quando os legados pontifícios tinham já partido de Calcedônia, o Concílio aprovou o cânon 28, que equiparava a Sé Episcopal de Constantinopla à de Roma.

O Papa rechaçou esse cânon. Prenúncio de tristes acontecimentos futuros…  

A luz da verdade brilhou com maior esplendor

A ortodoxia e a autoridade de Roma triunfaram nesse grande Concílio calcedonense. Eutiques e Dióscoro foram desterrados.

“É preciso que haja entre vós heresias” (I Cor 11, 19), ensina-nos o grande São Paulo. Por certo, Deus não deseja o erro, mas, em seus insondáveis desígnios, o permite com frequência.

E intervém então nos acontecimentos – por meio de homens providenciais, como São Leão Magno – de modo a fazer com que, no embate com as doutrinas heréticas, brilhe com maior esplendor a luz da verdade.

Precisamente isto aconteceu na questão monofisita: em determinado momento, a Igreja do Oriente corria o risco do contágio da heresia; tudo parecia favorecer a ação do Maligno.

Como, porém, Cristo nunca abandona sua Igreja, esta saiu vitoriosa da crise e, ademais, enriqueceu seu acervo doutrinário com a proclamação clara e infalível do dogma da união hipostática de Nosso Senhor Jesus Cristo, que forjaria a Fé dos fiéis ao longo dos séculos futuros. 

O Concílio de Calcedônia é belo exemplo de uma constante da história da Esposa de Cristo: “Depois de cada prova, a Igreja emerge particularmente armada contra o mal que procurou prostrá-La”.5 

Beau Dieu - Pórtico da Catedral de Amiens (França)

1 SÁNCHEZ HERRERO, José. Historia de la Iglesia. Edad Media. Madrid: BAC, 2005, v. II, p. 20.
2 Cf. LLORCA, SJ, Bernardino. Historia de la Iglesia Católica. Edad Antigua. 2.ed. Madrid: BAC, 1955, t. I, p. 572.
3 Idem, p. 581.
4 CCE 467. Grifo nosso.
5 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. 5. ed. São Paulo: Retornarei, 2002, p. 98.