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Catecismo


Por que o Direito e o Direito Canônico?
 
AUTOR: PE. BRUNO ESPOSITO, O.P.
 
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A aplicação do Direito requer estudo, competência, paixão pela verdade e pelo bem da pessoa. Exige o cultivo da virtude da prudência, muito bom senso e, sobretudo, honestidade intelectual e moral!

Nos centros acadêmicos eclesiásticos de Roma, circula uma anedota bastante conhecida sobre a diferença entre aqueles que estudam Filosofia, Teologia e Direito Canônico: os primeiros acabarão por perder um pouco da razão; os segundos, a fé; e os terceiros… simplesmente o tempo!

Certa vez, porém, instantes depois de que os presentes rissem e caçoassem de um pobre estudante de Direito Canônico, vítima-foco do gracejo, este respondeu, calmamente, tomando emprestadas e parafraseando as palavras do salmista: “Assim falaram os ímpios e insensatos!” (cf. Sl 9, 25; 52, 2).

Convite a questionar-se e a pensar

Profundamente convictos da veracidade da resposta desse estudante, não achamos inapropriado convidar a quem lê este artigo – que terá decidido fazê-lo pelos mais variados motivos, mas certamente atraído pela possibilidade de encontrar uma resposta sensata à questão – a refletir sobre a importância, para o nosso cotidiano, do Direito em geral e do Direito Canônico em particular.

Obviamente e antes de tudo, notemos que, ao nos interrogarmos sobre o sentido do Direito para nós, colocamo-nos na perspectiva própria à Filosofia e, dessa forma, como gostava de repetir Paul Ricœu (1913-2005), na disposição de seguir o convite da Filosofia a questionar-se, a pensar.

Convidamo-lo, portanto, a pensar, a fazer-se as perguntas certas. Paradoxalmente, o mais importante para quem não quer desperdiçar a sua existência é confiar, não em ter todas as respostas, mas em saber fazer a pergunta certa.

Segundo outro jurista e filósofo do Direito, Giuseppe Capograssi (1889-1956), o filósofo é aquele que detém a solitária tarefa de recolher as lições secretas da vida e exprimi-las. Nesse sentido, pode-se compreender quanta razão e bom senso tinha aquele estudante que designava como ímpio e insensato quem acreditava que estudar Direito Canônico era apenas uma perda de tempo.

Mero instrumento de um poder arbitrário?

Procuremos, primeiramente, verificar até que ponto é verídica a anedota da qual partimos. Como sói acontecer, por trás dela escondem-se chavões, mas há também um fundo de verdade. Em torno da realidade do Direito manifestam-se diferentes abordagens e comportamentos, por vezes em aberto conflito entre si.

São Tomás de Aquino Angelicum,
Roma

Certamente um desses chavões é o de enxergar o Direito como um conjunto de regras, normas e leis que limitam as legítimas aspirações de liberdade plena e de realização de cada um. Por outro lado, há também a concepção generalizada do Direito como instrumento arbitrário de quem detém o poder, que o usa como, quando e com quem convier: mero instrumento de um poder arbitrário.

A esse respeito permanece tristemente atual a resposta que Giovanni Giolitti (1842-1928) deu à pergunta que ele mesmo se punha. “O que é a lei?”: a lei é aquilo que se interpreta para os amigos e se aplica para os inimigos! Ou ainda sua versão clerical, que explica do seguinte modo as posições diversas das estátuas dos Príncipes dos Apóstolos na Praça de São Pedro: a de São Paulo estaria lendo “aqui se fazem leis”, e a de São Pedro, que aponta para o Tibre, afirmaria “ali elas são observadas”!

Fisiologia e patologia do Direito

Estamos profundamente convencidos que esse modo de sentir e ver o Direito nasce do pouco conhecimento do âmbito jurídico e daquilo que lhe concerne, que não permite distinguir entre fisiologia e patologia do Direito, entre o Direito como portador de justiça e o direito como mero arbítrio.

Além de todas as teorias sobre o Direito e a justiça, qualquer um poderá saber no que eles realmente consistem quando, lamentavelmente, for vítima de injustiça. Nesse instante, não precisará de nenhuma teoria ou explicação!

Quando, no convívio social, se é forçado a invocar e a suplicar como graça aquilo que é um verdadeiro direito; ou quando se é vítima de uma “justiça” sumária, apresentada como justiça suprema e necessária naquele momento (mas já Terêncio [185-159 a.C.] e Cícero [106-43 a.C.] recordavam que summum ius, summa iniuria – excesso de direito, excesso de injustiça), e que nega o direito natural de conhecer a acusação e o acusador; ou, ainda, quando se experimenta a frieza de um aparato administrativo ou judiciário que se limita a não responder ou a responder em tempo bíblico, significa que nos encontramos diante de um governo enfermo.

Dimensão jurídica do convívio social

Por essas razões, é importante voltar ao sentido e ao significado do Direito enquanto dimensão imprescindível da natureza humana, que gere as relações intersubjetivas segundo a justiça, entendida como medida daquilo que é devido, por ser capaz, segundo a mensagem evangélica, de abrir-se à caridade, entendida por sua vez como além da medida e que, enquanto tal, pressupõe sempre a existência e a realização da medida e, portanto, da justiça (nulla est charitas sine iustitia).

Essa dimensão jurídica do convívio social é própria também à sociedade que é a Igreja desejada e fundada por Cristo, e o seu Direito participa, ainda que de modo particular e original, como toda a parte visível e social, do ser instrumento para a salvação das almas.1

Não esqueçamos jamais, à luz de uma sã antropologia, que a primeira justiça devida ao outro é a de reconhecer a veracidade daquilo que ele é: pessoa criada à imagem e semelhança de Deus, redimida pelo Sangue de Cristo e, por isso, chamada a ser e sentir-se irmão de seus semelhantes, e não simplesmente “companheiro”. E evitemos, assim, fazer passar por direito aquilo que no fim se revela como um desejo egoísta que não leva em conta a natureza/ realidade e a dignidade da pessoa e dos outros. 

Dessa forma, em qualquer sociedade civil e na Igreja Católica, o único e verdadeiro problema não é o de haver ou não haver leis ou normas jurídicas, mas o de haver boas leis e boas normas jurídicas. Redescobrindo que leis e normas devem ser observadas com consciência não porque estão escritas em um código, mas porque são justas (iustum) e permitem a realização do bem comum foi decidido escrevê-las em um código e, portanto, são estabelecidas pela autoridade legítima (iussum). Por isso, justamente, A. Kaufmann (1872-1938) escreveu que o Estado não cria o Direito; o Estado cria leis, e Estado e leis estão abaixo do Direito!

O bom governo exige poucas leis

Nessa perspectiva, salvo aquilo que epikeia e equitas exigem a fim de que a justiça se realize hic et nunc (e instituições legais caracteristicamente canônicas, como a dispensa e o privilégio, não são mais que instrumentos atuantes de tal justiça), perde seu significado a tentação a que parece ceder quem governa em qualquer época, e da qual nos lembra Ulpiano (170-228) na famosa máxima “Princeps legibus solutus – O príncipe está desobrigado de todas as leis”. O fato é que, no fim, esse comportamento e essa forma de governar nunca compensaram, nem compensam!

A realização de um bom governo, em qualquer âmbito, requer que haja poucas leis (Corruptissima re publica plurimæ leges, advertia o grande Tá- cito [55-120]) e que estas sejam observadas por todos não porque mandadas pelas autoridades que detêm o poder, mas porque a justiça (entendida como o dar a cada um a sua parte, para São Tomás uma verdadeira e própria res; “ius est obiectum iustitiæ”2 ) assim o exige a fim de que a sociedade possa viver realmente em paz (“et erit opus iustitiæ pax, et cultus iustitiæ silentium, et securitas usque in sempiternum” [Is 32, 17]). 

Tanto isso é verdade, que o Aquinate afirma, sem nenhuma hesitação, que uma eventual lei humana discordante da lei natural “iam non erit lex sed legis corruptio – não será mais lei, mas corrupção da lei”.3 Não esqueçamos que a hiperprodução injustificada de documentos jurídicos sempre os distorce e deprecia, a ponto de desautorizar esses documentos e a própria autoridade que os produz.4

Como se percebe, o uso e a aplicação do Direito requerem estudo e competência, requerem tempo e paixão pela verdade e pelo verdadeiro bem da pessoa (cf. Mt 7, 12). Exigem o cultivo da virtude da prudência, a posse de muito, muito bom senso e, sobretudo, de honestidade intelectual e moral! Dentre tantos, um exemplo apenas: na eterna e sensível problemática entre “verdade” e “formalidade” na administração da Justiça no âmbito administrativo e judiciário, o canonista terá somente uma escolha: a verdade objetiva (obviamente, não a processual!).

Dois grupos contrapostos

Assim, se conseguimos provocar uma reflexão mais aprofundada sobre a necessidade do Direito e de haver poucas e boas leis, podemos esperar que muitos dos nossos leitores estejam de acordo com a resposta daquele bem preparado estudante, da qual partimos.

De fato, conforme a Bíblia afirma, o povo de Israel considerava “ímpio” aquele que não se reconhecia como criatura e, portanto, não reconhecia a Deus como Criador nem O cultuava, e agia em consequência como pecador, sobretudo sendo injusto com o órfão e a viúva. Os repetidos e fustigantes posicionamentos de Jesus contra os fariseus são uma verdadeira acusação contra a impiedade: com a desculpa de observar as leis, eles traí- am a justiça, desrespeitando o homem em suas necessidades básicas.

Até mesmo o termo “insensato”, mais do que indicar uma pessoa pouco inteligente, é usado na Bíblia para definir genericamente aqueles que não agem de modo razoável e seguem uma conduta em desarmonia moral com as justas normas dadas por Deus com a criação.

Nos Livros Sapienciais em particular, a humanidade é dividida em duas classes: a dos sábios e a dos insensatos. “A glória será o prêmio do sábio, a ignomínia será a herança dos insensatos” (Pr 3, 35). Esses dois grupos são e serão sempre contrapostos.

Os estudiosos e profissionais honestos do Direito não perdem, portanto, o seu tempo. Sim o fazem, pelo contrário, aqueles que o desconhecem ou desprezam, pois desta forma rejeitam a oportunidade de edificar a sociedade dos homens e a sociedade dos fiéis. (Revista Arautos do Evangelho, Junho/2018, n. 198, p. 33-35)

Pe. Bruno Esposito, OP

Nascido em Terracina, Itália, a 17 de julho de 1959, Pe. Bruno Esposito, OP, desempenha atualmente em Roma as seguintes funções:
• Professor ordinário na Faculdade de Direito Canônico da Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino – Angelicum.
• Professor convidado na Faculdade de Teologia da mesma universidade.
• Consultor e comissário junto à Congregação para a Doutrina da Fé.
• Consultor e comissário junto à Congregação para o Clero.
• Membro referendário do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica.
• Membro da Comissão Jurídica da Conferência Italiana dos Superiores Maiores.
• Capelão Magistral da Soberana Ordem de Malta.

1 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n.8; CIC/83, can.1752. 2 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.57, a.1. 3 Idem, I-II, q.95, a.2. 4 Cf. Idem, q.97, a.2; ad 1.

 
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