Fale conosco
 
 
Receba nossos boletins
 
 
 
Artigos


Espiritualidade


A condição para confiar
 
AUTOR: IR. BRUNA ALMEIDA PIVA, EP
 
Decrease Increase
Texto
Solo lectura
0
0
 
A confiança é um celestial escudo contra todas as desventuras, um poderosíssimo gládio apontado contra os inimigos de nossa salvação, um perfeito e cristalino canto de amor a Deus. Como praticar tão excelsa virtude?

Se perguntarmos num ambiente comum de nossos dias, composto por pessoas pouco versadas em Teologia, o que é confiança, sem dúvida receberemos as respostas mais diversas.

Alguns a descreverão como o ânimo em face das dificuldades; outros, como a força para não temer os sofrimentos; a maior parte, talvez, como a convicção de que, no fim, tudo dará certo… Contudo, embora em todas as definições anteriores haja algo de verdade, nenhuma delas caracteriza essa virtude de forma correta. O que é, então, a confiança?

Filial dependência em relação ao Altíssimo

Segundo uma expressão clássica, ela consiste na esperança fortalecida pela fé, o que, em certo sentido, coincide com a ideia de que no fim tudo dará certo. Há, entretanto, importantes diferenças entre ambos os conceitos.

Com sua habitual precisão, São Tomás de Aquino descreve a confiança como “uma esperança fortificada por uma opinião firme”.1 Essa “esperança muito forte” é fruto de considerações que justificam “uma espécie de certeza”2 de que obteremos o desejado. Para criar a “opinião firme” e adquirir a “espécie de certeza” por ele indicadas devemos ter, portanto, algum motivo concreto. Não basta adotar certa atitude difusamente otimista diante da existência.

O termo confiança, explica ainda o Doutor Angélico, provém do vocábulo fé, e esta “parece significar, antes de mais nada, que alguém concebe esperança por acreditar na palavra daquele que promete socorro”.3 Ou seja, confiamos sempre em alguém, no que ele diz ou no que ele é.

Em última análise, confiamos em Deus. E assim como ninguém, em são juízo, ousaria se abandonar aos cuidados de um desconhecido, por melhores que sejam as referências que dele se tenham, só poderá acreditar verdadeiramente no auxílio divino quem estabelecer uma estreitíssima e filial dependência em relação ao Altíssimo. 

O convívio com Deus confere uma grande paz interior. Depositar nas mãos da Providência todas as suas necessidades e anseios traz para o homem o paraíso já nesta terra, pois nada poderá lhe faltar ou ameaçar.

“Terás confiança e ficarás cheio de esperança. Olhando em volta de ti, dormirás tranquilo. Repousarás sem que ninguém te inquiete e muitos acariciarão o teu rosto. Porém, os olhos dos maus serão consumidos, para eles, nenhum refúgio, e não terão outra esperança senão em seu último suspiro” (Jó 11, 18-20).

O exemplo de Santa Teresinha

Exímio exemplo desse filial imbricamento nos foi dado pela grande Santa Teresinha do Menino Jesus, que se punha na presença do Altíssimo como uma criancinha diante de seu querido progenitor.

Conta-nos sua irmã Celina que ela “amou a Deus como um filho ama o seu pai, com provas incríveis de ternura. Aconteceu, ao falar d’Ele durante sua doença, tomar uma palavra por outra chamando-O: ‘Papai!’ Nós nos pusemos a rir, mas ela retomou comovida: ‘Oh! Sim, Ele é meu bom ‘Papai’ e é-me bem doce dar-Lhe este nome’. Jesus era tudo para o seu coração”.4

Os extremos de pueril carinho para com Jesus alcançados por esta alma predileta podem ser contemplados através de singelos gestos de devoção, como este narrado Celina:

“Durante sua doença, cometi uma imperfeição e como me arrependi muito, disse-me:

— Agora beijai vosso crucifixo.

Eu o beijei nos pés.

— É aí que um filho beija seu pai? Depressa, depressa, beija-Lhe o rosto!

Eu O beijei.

— E agora deixai-vos beijar por Ele.

Foi preciso que eu colocasse o crucifixo sobre minha face, então ela me disse:

— Está bem, desta vez tudo está esquecido!”

Pensa-se naturalmente em quem se ama

A irmã de Santa Teresinha mostra-nos também como ela, sem deixar os seus afazeres práticos, tinha a mente continuamente posta em seu Bem-Amado:

“A união de Ir. Teresa com Deus era simples e natural, bem como sua maneira de falar d’Ele. Perguntando-lhe se perdia às vezes a presença de Deus, respondeu-me mui simplesmente: ‘Oh, não! Creio que nunca fiquei três minutos sem pensar em Deus’. Mostrei-me admirada por ser possível uma tal aplicação. ‘Pensa-se naturalmente em quem se ama’, replicou”.6

Diz o Catecismo que “a oração é a elevação da alma a Deus”.7 Rezar não consiste, portanto, na mera repetição de Pai-Nossos ou Ave-Marias, mas em algo muito mais elevado. É preciso aprender a viver em função do Pai Celeste, procurando se relacionar com Ele através de uma conversa contínua e ininterrupta.

Mais uma vez, Celina nos apresenta um exemplo desse singular espírito de oração que transcende as obrigações terrenas:

“Um dia entrei na cela de nossa querida irmãzinha e fiquei impressionada com sua expressão de grande recolhimento. Costurava ativamente, entretanto parecia absorvida numa contemplação profunda: ‘Em que pensais?’, perguntei-lhe.

— Eu medito o Pai-Nosso, respondeu-me. É tão doce chamar a Deus nosso Pai…

E as lágrimas brilharam em seus olhos”.8

As coisas deste mundo, considerava-as em segundo plano, porque vivia com a mente posta exclusivamente em Deus, e esse angelical convívio fazia as delícias de seu coração. Suas palavras, “pensa-se naturalmente em quem se ama”, provam o quanto é natural à alma confiante o amor ao Pai, o espírito de oração e a serenidade.

O mau temor das próprias faltas

Nem todos, entretanto, são capazes desse filial abandono. Muitos há que consideram impossível possuir este gênero de relacionamento com o Altíssimo por sentirem em si o peso dos próprios pecados.

“Parece-lhes que um Deus tão puro deveria sentir invencível repulsa ao inclinar-Se para elas. Impressão inconveniente, que lhes dá à vida interior uma postura contrafeita, a qual, por vezes, chega a paralisá-las por completo. Como se enganam essas almas!”9

A fim de afugentar de suas irmãs do Carmelo semelhantes pensamentos, Santa Teresinha contava uma inocente historieta que a tocou de modo especial quando a leu em sua infância:

“Um rei, tendo partido para a caça, perseguia um coelho branco que seus cães estavam prestes a atingir. O coelhinho, sentindo-se perdido, deu uma viravolta e rapidamente saltou nos braços do caçador. Este, tocado por tanta confiança, não mais quis separar-se do coelho branco, não permitindo que o tocassem, reservando-se o cuidado de alimentá-lo”.10

E, sobre esse episódio, comentava: “Assim fará Deus conosco […] se, perseguidos pela justiça, figurada pelos cães, procurarmos refúgio nos braços de nosso Juiz…”11

Se cometemos muitas faltas, devemos correr ao encontro do Senhor a fim de que Ele nos cure e santifique, pois “se, quando éramos ainda inimigos, fomos reconciliados com Deus pela Morte de seu Filho, com muito mais razão, estando já reconciliados, seremos salvos por sua vida”! (Rm 5, 10).

Mesmo quando o peso de nossas culpas nos oprima, precisamos ter uma confiança cristalina, a “santa obstinação” de que, nos arrependendo, seremos sempre recebidos por Nosso Senhor com um afeto transbordante. Ele está pronto não só a nos perdoar, mas a transformar o lodo de nossas almas em límpido oceano de virtude.

“A fraqueza é grande, mas Ele vos ajudará. Apesar de vossa boa vontade, tereis talvez quedas e reincidências, mas o Senhor é misericordioso. Ele pede apenas que não vos deixes adormecer no pecado, que luteis contra os maus hábitos”.12

O mais poderoso argumento contra esse temor, tão maléfico às nossas almas, o encontramos nas próprias palavras de Cristo. Ele, que veio à terra para salvar os pecadores (cf. Mc 2, 17; Lc 5, 32), bradou “Não temas!” a São Pedro, após ouvi-lo dizer: “Afastai-Vos de mim, Senhor, porque sou um pecador!” (Lc 5, 8-10).

A confiança não afasta dos sofrimentos

Um verdadeiro paraíso interior é introduzido pela confiança no coração de quem a pratica. Contudo, essa virtude não põe fim aos períodos de aridez espiritual, nem às tentações, e muito menos aos sofrimentos físicos ou morais que costumam nos assaltar nesta vida. Tais reveses fazem parte do estado de prova e nos são enviados para fortalecer nossas almas e levá-las a dar mais glória a Deus. A confiança não nos afasta dos sofrimentos; apenas nos ajuda a aceitá-los e atravessá-los sem perder a paz interior.

Além do mais, ela exige esforço e árduo combate contra o nosso orgulho e más inclinações porque, por incrível que pareça, é mais fácil ao homem confiar nas próprias forças do que em Deus, acreditar nos auxílios terrenos do que nos socorros celestes.

Sobre isso, mais uma vez nos dá o exemplo a virginal heroína do Carmelo de Lisieux pois, “embora caminhasse nessa via de confiança cega e total que chama ‘sua pequena via’ ou ‘via da infância espiritual’, nunca negligenciou a cooperação pessoal. Dava-lhe mesmo tal importância que encheu sua vida de atos generosos e contínuos. É assim que ela entendia e no-lo ensinava constantemente no noviciado”.13

É preciso dar de si sem medida

Certo dia, comentando com Celina uma passagem do Eclesiástico, Santa Teresinha explicou-lhe com energia que o abandono e a confiança em Deus alimentam-se de sacrifícios.

“É preciso, disse-me, fazer tudo o que está em seu poder, dar sem medida, renunciar-se constantemente, numa palavra, provar seu amor, por todas as boas obras a seu alcance. Mas na verdade, como tudo isso é pouca coisa… e quando tivermos feito tudo quanto cremos dever fazer, é necessário confessar que somos ‘servos inúteis’ (Lc 17, 10), esperando, entretanto, que Deus nos dê de graça tudo o que desejamos. Eis a esperança de todas as pequenas almas que ‘correm’ na via da infância: digo ‘correm’ e não ‘repousam’”.14

Assim pensava também Santo Inácio de Loyola: “Nas empresas difíceis, é preciso se abandonar nas mãos de Deus com uma confiança perfeita, como se esperássemos nos vir o êxito miraculosamente do Alto; mas é preciso agirmos em tudo como se o bom termo dessa empresa dependesse exclusivamente dos nossos esforços”.15

Quem deseja alcançar a santidade não economiza energias no combate a seus defeitos e más inclinações, mas sabe que um dom tão sublime só pode ser alcançado pela misericórdia infinita de Deus, e Ele, sem dúvida, não deixará de concedê-lo. 

Celestial escudo contra as desventuras

Para os confiantes, Deus reserva o inimaginável.

Foi através dessa virtude que muitos Santos “roubaram” de Deus o Céu. O primeiro em fazê-lo foi o bom ladrão que, tendo sido justamente condenado pelos homens, não duvidou em pedir e obter o perdão de Deus: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

A confiança de Santa Gertrudes “fazia tal violência ao Divino Coração, que Ele era forçado a favorecê-la em tudo”.16 E Santa Catarina de Siena de tal forma tinha certeza de ser atendida, que assim rezava: “Senhor, não me afastarei de junto dos vossos pés, da vossa presença, enquanto vossa bondade não me tiver concedido o que desejo”.17

Portanto, podemos concluir que a confiança é como um celestial escudo contra todas as desventuras, um poderosíssimo gládio apontado contra os inimigos de nossa salvação, um perfeito e cristalino canto de amor a Deus.

Praticando essa virtude, conquistaremos a tranquilidade interior. Tendo sido confortados por ela, poderemos proclamar com o Rei Davi: “O Senhor é meu rochedo, minha fortaleza e meu libertador. Meu Deus é minha rocha onde encontro o meu abrigo. Meu escudo e força de minha salvação, minha cidadela e meu refúgio. Meu salvador que me salva da violência! Invoco o Senhor que é digno de todo o louvor e fico livre dos meus inimigos” (cf. II Sm 22, 2-4).

Por fim, cabe-nos recordar outra verdade, capaz de revestir de elevados méritos o menor de nossos atos de virtude: somente por meio da Santíssima Virgem, a Mãe da Confiança, nosso abandono em Deus será completo. As angústias e inquietações jamais devem nos abater pois, enquanto filhos, temos o direito de esperar o impossível d’Aquela que é Mãe de Misericórdia, nossa vida, doçura e esperança. (Revista Arautos do Evangelho, Outubro/2019, n. 214,  p.34 a 37).

* última imagem: Santo Inácio de Loyola – Santuário de Loyola, Azpeitia (Espanha)

Notas:

1 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.129, a.6, ad 3.
2 Idem, a.6.
3 Idem, ibidem.
4 SANTA TERESA DE LISIEUX. Conselhos e lembranças. 7.ed. São Paulo: Paulus, 1984, p.75.
5 Idem, p.48.
6 Idem, p.72.
7 CCE 2559.
8 SANTA TERESA DE LISIEUX, op. cit., p.74.
9 SAINT-LAURENT, Thomas de. O livro da confiança. São Paulo: Retornarei, 2019, p.16.
10 SANTA TERESA DE LISIEUX, op. cit., p.52.
11 Idem, ibidem.
12 SAINT-LAURENT, op. cit., p.66.
13 SANTA TERESA DE LISIEUX, op. cit., p.50.
14 Idem, p.51.
15 BOUHUORS, Dominique (Ed.). Les maximes de Saint Ignace, fondateur de la compagnie de Jésus, avec les sentimen de S. François Xavier, de la mesme Compagnie. Paris: Sebastien Marbre-Camoisy, 1683, p.61.
16 SAINT-LAURENT, op. cit., p.92.
17 Idem, ibidem

 
Comentários