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Espiritualidade


Quarenta dias de combate espiritual
 
AUTOR: PE. FERNANDO NÉSTOR GIOIA OTERO, EP
 
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A imposição das cinzas assinala com grande poder simbólico o início de um período de profunda metanoia, que se encerrará na manhã da Quinta-Feira Santa.

Cabe ao Cardeal-Presbítero de Santa Sabina a função de, no início da Quaresma, impor as cinzas sobre a cabeça do Papa, pronunciando uma destas duas fórmulas: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15), ou “Lembra-te que és pó, e ao pó hás de voltar” (cf. Gn 3, 19).

Função honrosa, sem dúvida, mas não isenta de embaraços, como declarou o Cardeal Jozef Tomko, em entrevista a L’Osservatore Romano: “Julgo de fato difícil dizer ao Papa: ‘Convertei-vos e crede no Evangelho’, pois só ele tem pleno direito de dizer isto a mim e a todos os demais!”1 Não menos embaraçoso era usar a segunda fórmula quando o Papa João Paulo II já estava enfermo e em idade muito avançada. “Era recordar-lhe mais uma vez aquilo que ele não só sabia, mas sentia no seu corpo”.2

Na dificuldade da escolha, o purpurado optava ora por uma fórmula, ora por outra, certo de que nenhuma das duas era sua nem do Papa, mas sim “palavras de Deus perante as quais devemos todos inclinar a cabeça”.3 Com a imposição das cinzas, a Santa Igreja nos recorda a fragilidade da vida humana: na hora da morte, como bem observa o Cardeal Tomko, “de nada nos servirão a riqueza, a ciência, a glória, o poder, os títulos nem as dignidades”.4

Convite a elevar nossas vistas para a eternidade

A Quarta-Feira de Cinzas nos introduz no tempo litúrgico da Quaresma, quarenta dias de combate espiritual nos quais somos convidados a rejeitar as seduções do mundo e a “ouvir a palavra de verdade, viver, dizer e cumprir a verdade, rejeitando a mentira que envenena a humanidade e constitui a porta de todos os males”.5

As cinzas que o sacerdote benze e impõe nesse dia são obtidas pela incineração das palmas usadas no Domingo de Ramos do ano anterior. Os fiéis se aproximam em fila e o ministro de Deus as coloca em sua fronte, em forma de cruz. Procedem muito bem aqueles que permanecem pelo resto do dia com este sinal, proclamando assim com ufania sua fé perante a impiedade do mundo hodierno.

Lembrando-nos de modo expressivo quanto é frágil nossa natureza e como são efêmeros os bens deste mundo, a cerimônia de imposição das cinzas nos compenetra de que é preciso humilhar-se e fazer penitência.

As palmas usadas para glorificar Nosso Senhor à sua entrada em Jerusalém, agora transformadas em cinza, recordam de algum modo o ocorrido poucos dias depois, quando começou sua Paixão.

As palavras pronunciadas pelo sacerdote nos advertem sobre a necessidade de caminhar rumo a uma profunda mudança de vida: “Convertei-vos e crede no Evangelho”; ou evocam o efêmero da natureza humana: “Lembra-te que és pó, e ao pó hás de voltar”; queiramos ou não, em pó seremos transformados. Alguns sacerdotes dizem a um fiel a primeira fórmula e ao seguinte a segunda, e assim sucessivamente, como que deixando ao próprio Deus a escolha da fórmula para cada alma.

Todos os atos da Liturgia desse dia têm por objetivo elevar nossas vistas à consideração da eternidade. O singelo rito de imposição das cinzas assinala com grande poder simbólico o início do itinerário de uma verdadeira penitência, de uma profunda metanoia, ou seja, de uma mudança de mentalidade que transforma e renova o homem. Itinerário de quarenta dias que se encerrará na manhã da Quinta-Feira Santa.

Jejum e esmola, as duas asas da oração

Este percurso tem uma pedagogia divina, incitando-nos a praticar com mais intensidade três obras de piedade: jejum, esmola e oração.

Jejuar, ou seja, abster-se de algum alimento, não é a única forma de privação que podemos nos impor. A realidade completa do jejum é o “sinal externo de uma realidade interior, do nosso compromisso, com a ajuda de Deus, de nos abstermos do mal e de vivermos do Evangelho”.6 Há muitas formas de praticar o jejum: renunciar ao amor-próprio, aos impulsos de impaciência com o próximo, às atitudes violentas, à mentira, às seduções do consumismo e do hedonismo, bem como a todo tipo de maldade. “Sede bondosos e compassivos uns com os outros” (Ef 4, 32), recomenda-nos São Paulo.

Quanto à esmola, deve esta estar marcada pela prodigalidade face às necessidades do próximo, especialmente dos que sofrem. Grande impacto nos causa a pobreza material em nossos dias, e pouco nos toca a pobreza espiritual, muito mais dolorosa.

Observa Bento XVI que, segundo Santo Agostinho, “o jejum e a esmola são ‘as duas asas da oração’, que lhe permitem tomar mais facilmente o seu impulso e chegar até Deus”.7 Eis aqui o terceiro convite que nos faz a Santa Igreja no tempo da Quaresma: o de termos uma oração mais fiel, surgida de nosso interior, do coração e não apenas dos lábios. “Nem todo aquele que Me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai” (Mt 7, 21).

Rumo a uma conversão perene e profunda

O tempo quaresmal convida as famílias e as comunidades a, valorizando esse itinerário, apartarem de si tudo quanto as afaste das coisas espirituais, a se alimentarem da oração em família e da leitura da Palavra de Deus, a se purificarem no Sacramento da Reconciliação, a participarem da Eucaristia dominical e, sempre que possível, da semanal.

Tudo isso nos fará caminhar rumo a uma conversão que não seja passageira, nem volúvel ou artificial, mas perene e profunda. Que os exercícios quaresmais produzam em nós mudanças de atitude, tão necessárias no mundo de hoje, rumo à ordem e à paz, não apenas em família, mas especialmente na sociedade. Que nos conduzam, portanto, a um sincero arrependimento e um sério propósito de emenda de vida.
Isto é o que desejo a todos e a cada um, para que, após o período quaresmal, as comemorações da Páscoa da Ressurreição abram para nós um caminho novo rumo à santidade de vida, ou seja, à verdadeira felicidade. ² (Revista Arautos do Evangelho, Março/2017, n. 183, pp. 16-17).

1 GORI, Nicola. Quando dico al Papa: “Convertiti e credi al Vangelo”.
In: L’Osservatore Romano, 6/2/2008: www.vatican.va.
2 Idem, ibidem.
3 Idem, ibidem.
4 Idem, ibidem.
5 BENTO XVI. Audiência geral, 1/3/2006.
6 BENTO XVI. Audiência geral, 9/3/2011.
7 Idem, ibidem.

 
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