Fale conosco
 
 
Receba nossos boletins
 
 
 
Artigos


Plinio Corrêa de Oliveira


O sibarita e o herói
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 29/08/2019
 
Decrease Increase
Texto
Solo lectura
0
0
 
Numa palestra para jovens, depois da apresentação de uma “sketch” teatral, Dr. Plinio discorre a respeito do processo cognoscitivo no homem, da legitimidade das impressões sensíveis, como também da necessidade da lógica e do raciocínio para se chegar a galgar os píncaros da santidade.

De um modo muito agradável nesse “sketch” teatral, apresentaram-me o contraste entre a filosofia de vida dos sibaritas e dos cortonenses. Os primeiros, habitantes da cidade de Síbaris, voltados para o prazer e para o gozo das delícias da vida. Os segundos, de Cortona, desejosos de aventuras heróicas, de galgar picos de montanhas altíssimas.

Poderíamos fazer uma coisa mais ou menos superficial, comentando as figuras dos sibaritas e depois as figuras heróicas aqui representadas, mas não sairíamos com os ensinamentos mais profundos que se podem tirar de uma peça dessas.

Por exemplo, a imagem que me pareceu a mais impressionante: a do sibarita viajando de avião. Sua atitude e gesto de cabeça denunciam uma tendência a apalpar os limites do próprio conforto, para perceber se todas as exigências possíveis do corpo estavam sendo atendidas. É como se se interrogasse: “— Não haverá em mim um desejo qualquer de delícia que não esteja atendido?”, para concluir: “Não, não há!”, e desatar numa risada estúpida. Um outro sibarita, a seu lado, tem também uma expressão de quem gostaria de interrogar algo, porém não sabe fazê-lo, e sua fisionomia é de quem contempla o vácuo.

Vendo essa cena, percebemos a imbecilidade e a nulidade do sibaritismo, a tal ponto que, durante a peça, houve expansões que manifestaram rejeição. De outro lado, vimos também magníficos picos nevados, um deles vencido por um alpinista com o qual nos entusiasmamos.

Os meus ouvintes tiveram impressões e, através destas, conheceram algo de mais profundo.

O instinto, a impressão e a compreensão

Diz a filosofia de São Tomás que os animais têm sentidos como nós. Eles ouvem, cheiram, vêem, tateiam, têm os cincos sentidos do homem, mas falta-lhes compreensão. Eles têm o que se chama muito adequadamente, na filosofia escolástica, notícia das coisas. Os animais notam a realidade que os cerca e, pelo instinto, fogem, avançam, comem ou têm medo de ser comidos. Os instintos lhes ensinam tudo, sem que eles compreendam nada. Poder-se-ia talvez dizer — a expressão não me parece muito precisa — que o animal é uma trouxa de carne que ser de robot para o instinto.

Este o impele e o animal obedece. Compreensão? nenhuma! Vontade livre? Nenhuma! No fundo, é um autômato.

Autômato de algo de vivo, que são os instintos. O que é mais nobre do que ser autômato de algo mecânico ou eletrônico como são os computadores, adorados hoje em dia… Pois qualquer bichinho, qualquer formiga possui mais complexidade e mais nobreza do que o mais sofisticado computador. A formiga tem vida, o computador é inerte.

Isto posto, notamos que, diante dessa peça teatral, fizemos muito mais do que uma formiga. Não tivemos simplesmente notícia, mas impressões acerca de situações morais. Por exemplo, da condição do homem que escolheu o gozo da vida como finalidade de sua existência, e com isso se deformou. Como levamos no espírito uma idéia mais ou menos explícita de como um homem deve ser, pudemos conferi-la com a mentalidade do sibarita e percebemos o ridículo da atitude dele.

Os senhores conheceram uma série de coisas olhando para aqueles personagens da peça. O que é uma operação incomparavelmente mais nobre do que a de um animal, dotado às vezes de sentidos muito mais finos do que o nosso, mas que não passa de um animal.

Na jovem idade que têm, os que assistiram a peça fizeram todo um trabalho mental rápido, do qual nem se deram conta. Mas agora que descrevo a complexidade das reações que essas figuras produziram no seu espírito, podemos nos perguntar se elas foram profundas, se foram de sibarita ou de cortonense.

Um sibarita, colocado diante de um palco onde se representa uma cena qualquer, que posição toma? Ele também olha? Ele também sente? Ele se entrega a essas comparações de que falamos?

Os senhores não fizeram esforço nenhum para compreender o que estava se passando. Pelo contrário, se distraíram, exercitaram seus sentidos, sua inteligência, e concluíram algo que lhes pareceu agradável. Portanto, o que fizeram foi reto, direito, mas foi o que um sibarita gosta também de fazer, pois até este é capaz de realizar o que tem propósito. Ora, essa operação intelectiva tem propósito, foi bem feita.

Havia na peça de teatro uma janelinha através da qual se via um panorama bonito. Um sibarita, olhando por essa abertura, encontraria prazer. Se se compraz e se sente à vontade, é porque isso não custa esforço, não é penoso, não é difícil; é algo que o homem faz sem maiores entraves.

Conhecimento por conaturalidade

Diferente é a condição do alpinista, do qual conhecemos uma série de aspectos. Ele estava sobre aquele pico, de pé, rodeado pelos ventos, diante da vertigem de vários abismos que se abriam a seus pés, como uma espécie de rei dos precipícios. E não só destes, mas rei também das altitudes. Ele realmente calcava aos pés os abismos, porque tinha calcado aos pés as montanhas.

Vendo o homem naquela altitude, dominando todos os abismos, somos levados a exclamar: Que interessante! Que beleza!

Aquela natureza fria, que exige coragem para ser suportada, a alvura branca e casta daquelas neves, que esplendor! É a formosura forte e rígida da pureza.

Como podemos conhecer tanta coisa, vendo uma peça? São Tomás fala de um conhecimento por conaturalidade, pelo qual, sem ser preciso fazer uma série de raciocínios expressos, pode-se chegar a entender muitas coisas. Por algo que está ao mesmo tempo em nossa natureza e nas coisas que vimos — por uma conaturalidade —, olhando para aqueles abismos sentimos o esforço que representa galgá-los. Num primeiro olhar, a nossa natureza, em contato com aquela realidade, produziu o conhecimento.

Foi também por conaturalidade que os senhores sentiram o que havia de gostoso e o que de mentiroso nos prazeres do sibarita.

Conaturalidade: a natureza de um posta em presença da de outro, produz um reflexo; desse reflexo jorra uma cognição: o sibarita, é um pústula; aquele outro, não, é um campeão!

No momento os meus queridos ouvintes talvez estejam se distraindo um pouco pelo fato de eu estar explicando tudo em detalhes. Na verdade, se os senhores tivessem de fazer um trajeto com um companheiro que fosse o tempo inteiro explicitando essas coisas, os senhores diriam: “— Fique quieto! Eu não quero conhecer por raciocínio, quero sentir, degustar o sabor da realidade. O seu perpétuo raciocinar me cansa. Deixe disso! Quando nós voltarmos, você raciocina para mim. Agora eu quero sentir a altura, quero sentir o abismo, quero sentir o gelo, eu quero sentir as besteiras do sibarita, quero sentir tudo. Depois vamos conversar, mas me deixe antes sentir!”

É a conaturalidade, um modo legítimo de conhecimento.

Mais ainda: quem não quiser conhecer por esta forma, vira um racionalista, um intelectual que só se interessa por teorias e doutrinas, desligado da realidade, hirto e frio. Em
suma, um homem incompleto.

O conhecimento pela lógica

Esse conhecimento por conaturalidade é apreciado tanto pelo sibarita quanto pelo não-sibarita, constituindo um dos raros pontos de encontro entre eles. Mas existe outro modo de conhecer que não seja por conaturalidade?

Sim. É o do raciocínio, pelo qual, depois de o homem ter recolhido todas as impressões, começa a refletir sobre estas, usando a lógica. Ele viu o sibarita, viu os píncaros elevados, e põe-se a raciocinar. Com isso, faz uma operação muito mais alta do que o simples sentir.

Pois não me basta ver e experimentar as coisas, eu preciso ter o controle daquilo que vi e senti. Eu preciso fazer uma operação lógica. Como é essa operação?

Ali estava o sibarita, ali estava o pico nevado. Agora a peça acabou, todo mundo foi embora, eu fiquei sozinho neste auditório e me pergunto a mim mesmo: “Em última análise, que razão eu tive para preferir o herói em vez do sibarita? Minha escolha foi tão instintiva, que eu não conheço o motivo que tive para tomá-la, e acabo não conseguindo explicar-me para mim mesmo. Mas eu preciso ter uma explicação, porque, do contrário não me sinto tão longe do animal conduzido só pelos instintos. Em segundo lugar, se houver uma ocasião em que a vida exija de mim um verdadeiro sacrifício, eu preciso saber por que razão devo me decidir pelo sacrifício e não pela via do sibarita.”

Imaginemos um caso.

Eu tenho um irmão. Ambos fomos educados juntos, na maior amizade e intimidade. Meu irmão tomou um mau rumo na vida, e eu quero seguir um bom caminho. A ruptura vai doer para nós dois, porque eu, seguindo as sendas do bem, terei reflexões e freqüentarei ambientes de que meu irmão não gosta. Mas ele, em seu caminho, também entrará em ambientes onde não devo ir. De maneira que a amizade entre nós pode continuar teoricamente, mas, na prática, é uma amizade que se rachou. Rachar não é desaparecer, mas ficar quebrado em dois pedaços. Eu devo ou não fazer esse sacrifício de rachar nossa amizade?

Sinto, de um lado, o prazer do convívio com meu irmão. Como é desagradável perder o convívio dele e lhe causar o aborrecimento do meu afastamento! De outro lado, ouço entretanto o convite  do  bem: “Venha por aqui, não siga aquele caminho!”

A razão nos demonstra que temos de seguir o caminho do sacrifício e do dever, rejeitando a mentalidade sibarítica

Se eu aderir à mentalidade sibarítica, de preferir o que é gostoso, eu seguirei meu irmão. Mas algo em mim mesmo me diz que é preciso não ir atrás dele.

Por mais que eu queira meu irmão — a palavra “irmão” é tão carregada de sentidos! —, a razão de minha vida não é ele. Não lhe toca o direito de exigir de mim que eu me rebaixe até onde ele quer se rebaixar. Por que não sobe ele aos meus píncaros, em vez de eu descer aos charcos dele? Eu, que sinto em mim asas para voar e chegar até o mais alto dos montes, que sinto pernas firmes para galgar as altitudes mais árduas e mais difíceis, vou me refocilar na lama só porque ele quer? Vou me desfigurar, causar horror a mim mesmo, só para não perder a companhia dele? Não pode ser!

Por que ele não me segue? Se tenho de ser amigo dele a ponto de acompanhá-lo, não tem ele também de ser amigo meu a ponto de me seguir? Se nessa amizade não existir reciprocidade, e ele não for capaz de fazer por mim o que ele quereria que eu fizesse por ele, eu pergunto: isto é amizade? Uma amizade que não é recíproca, vale de algo? A reciprocidade é a lei da vida, e onde ela não existe, não há relações humanas.

Então, concluo: “Eu tenho que seguir o caminho do dever. Por mais que me doa, eu vou me agarrar com as duas mãos e vou enfrentar essa escolha. Vou optar pelo bem. Já optei e dei o primeiro passo!” (Revista Dr. Plinio, Outubro/2003, n. 67, p. 22 a 25).

 
Comentários