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Plinio Corrêa de Oliveira


“Senhor, sê benigno com Sião” “
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 14/08/2019
 
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Depois de ter analisado a dor e o arrependimento do salmista, Dr. Plinio conclui seus comentários ao “Miserere”, salientando o valor da contrição e da humildade aos olhos de Deus

“Arrependimento de David” Iluminura para o salmo Miserere, das “Ricas Horas do Duque de Berry

Ao considerarmos o Miserere, percebemos tratar-se do histórico de uma alma que era amada por Deus e O amava, nos seus dias de inocência. Porém, ela não perseverou na fidelidade a esse amor e cometeu o pecado. Mais tarde, arrependeu-se e foi perdoada. A partir daí tem início a época não mais da candura primeva, nem a do pecado, mas é o tempo do perdão que apaga a falta e restaura a inocência.

Então, continua o Salmista:

Senhor, abrirás os meus lábios, e a minha boca anunciará os teus louvores.

Parece algo estranho, um ser que sabe falar, mas não o faz sem que Deus lhe abra os lábios. Por que a necessidade dessa intervenção divina para que a boca do salmista anuncie os louvores d’Ele? Que sentido profundo essas palavras encerram?

A resposta é simples. Querem elas dizer que, diante da infinita grandeza do Criador, o homem não é capaz de louvá-Lo digna e adequadamente sem o auxílio sobrenatural da graça divina. Então ele assim se expressa nesse versículo: “Se Vós me mandardes a vossa graça, aí serei capaz de vos elogiar e de vos louvar condignamente; animado nos meus lábios por vosso dom, proclamarei as vossas glórias. Sem esse socorro do alto, sou indigno, incapaz, e da minha boca não se pode esperar um cântico de adoração a Vós.”

Pode-se ver também nessa passagem a idéia do pecador numa situação de rompimento com Deus, e que só alcançará a reconciliação se o Senhor o perdoar e o tornar capaz de cantar seus louvores, por uma ação da graça que o transforme e regenere.

Antes de tudo, o sacrifício de alma

Porque se quisesses um sacrifício, eu o teria oferecido: mas Tu não Te comprazes com holocaustos.

A lei antiga compreendia numerosos sacrifícios. Em geral, de animais que deviam ser destruídos em holocausto a Deus, pois a destruição era um modo de oferecer a vítima integralmente. Com efeito, tomar um cordeiro e destrui-lo na fogueira em homenagem a Deus, é muito diferente de matá-lo e distribuir os seus restos para serem comidos. Esta é uma ação eminentemente louvável, porém não é idêntica, como significado, àquela de destruir para ofertar a Deus, sem nenhuma utilidade prática. O oferecimento de algo com este fim — matar a fome de alguém — é bom, mas o objeto imediato dele é esse alguém, não se dirigindo a ação sacrifical unicamente para Deus.

Ora, a fim de que o sacrifício de uma vítima se eleve direto a Deus, e só para Deus, é preciso fazê-lo de maneira a que ela não seja utilizada por mais ninguém. O ofertante exprime assim o seu desejo de que aquele animal criado por Deus, só para Deus exista, como se Este fosse um amigo de honra, um rei que se dignou sentar-se à sua mesa e para quem prepara um banquete exclusivo. O que sobrar, manda destruir no fogo.

Neste espírito estavam orientados numerosos sacrifícios de animais que se faziam na antiga Lei. Vemos até mesmo Nossa Senhora e São José — portanto, quando a antiga Lei estava prestes a terminar, pois o Messias tinha chegado e logo redimiria a humanidade — levarem duas rolas para o Templo, de acordo com os preceitos judaicos, para serem imoladas em louvor a Deus.

Entretanto, o salmo expressa uma verdade ainda mais ampla: Deus não se satisfaz com meros oferecimentos materiais, como imolar um cordeiro ou um pombo, para que os outros comam ou para qualquer finalidade diferente. É preciso um sacrifício antes de tudo da própria alma, a imolação de algo ao qual se deve renunciar. E enquanto essa renúncia não for feita, as pazes com Deus não estão estabelecidas.

Um exemplo. O mandamento divino prescreve que os homens pratiquem a castidade. Sem essa virtude, especialmente necessária no mundo contemporâneo, não pode haver sacrifício agradável a Deus. Imaginemos, porém, que aparecesse de repente um falso profeta, com uma falsa revelação, proclamando: “Deus reconhece que a humanidade chegou a um tal grau de decadência que já não pode Lhe oferecer o sacrifício de manter a castidade. Então, Deus, na sua infinita bondade, declara: ‘Eu perdôo os homens e deixo que continuem impuros, com a condição de matarem cinqüenta mil bois e vacas procedentes de todos os continentes, aos pés do Monte Sinai, local de extraordinário simbolismo’.”

Não há dúvida de que os homens ofereceriam essas cinqüenta mil cabeças de gado imediatamente. Não só pela facilidade que teriam em reuni-las pelo mundo afora, mas sobretudo porque não fariam com isso um sacrifício de alma: esta não tinha de renunciar ao vício, não precisava tornar-se pura. Eles mandavam matar uns bois e umas vacas, e Deus que se contentasse com essa oferta.

Contrição e humildade, agradáveis a Deus

Vem então a explicação:

O sacrifício digno de Deus é um espírito compungido; não desprezarás, ó Deus, um coração contrito e humilhado.

O Salmista sabe que Deus aceita e vê com bons olhos os holocaustos, porém estes não O satisfazem enquanto não houver na presença d’Ele um coração contrito e humilhado. Essas duas palavras, assim como cada termo da Escritura, precisam ser analisadas e saboreadas.

Lembro-me do tempo em que era comum, quando chegava o fim de ano, publicarem nas associações religiosas as listas dos doadores de obras de misericórdia, com os respectivos valores dos seus donativos. Tornando-se assim conhecidos, sobretudo os mais generosos, eles se projetavam bem aos olhos do público. E mesmo quando o indivíduo era um pecador notório, ele podia se comprazer na oferta de uma doação grande com a idéia de que, ao lerem a lista, diriam: “Fulano peca muito, mas dá muito; e por causa disso, à última hora Deus ainda o salvará”. Era uma saída para a situação dele.

Contudo, o salmo retifica este erro. A doação material pode e deve ser feita até pelo pecador, quando este tem recursos para isso. Se for um homem rico que toma uma parte de sua fortuna para dá-la em esmolas, esse gesto obviamente aumenta a benevolência de Deus para com ele. Porém, não satisfaz o Criador, conforme afirma o salmista: “Tu não te comprazes com holocaustos”.

Então se compreende o sentido desses versículos, ou seja, Deus aceita os presentes monetários, os sacrifícios, as esmolas, mas não fica satisfeito com tudo isso. O que Ele quer do homem é um coração contrito e humilhado.

O que significa “contrito”?

A linguagem católica, sempre muito precisa, distingue a contrição da atrição, que são formas de arrependimento dos nossos pecados, profundamente diversas entre si.

Pela contrição, o pecador se arrepende de suas faltas porque, em virtude de uma ação da graça na sua alma, considera o quanto elas ofendem a Deus, quanto era má essa injúria, por ser Deus quem é, e está disposto a não pecar mais. De tal maneira que, ainda que não houvesse Inferno, esse pecador não cometeria mais infidelidades, porque existe Deus.

É evidente que esta motivação confere ao arrependimento um alto valor religioso, pois é inspirada pelo puro amor de Deus. Por isso, se uma pessoa faz um ato de contrição sincera, ela obtém o perdão de seus pecados. Está obrigada a se confessar assim que puder, mas o perdão já foi alcançado pelo arrependimento que ela teve por amor de Deus.

A atrição, por sua vez, é o arrependimento não por amor de Deus mas por temor do Inferno. Pode acontecer que, receando a condenação e os castigos eternos, a pessoa tenha um arrepio e resolve pôr fim à sua vida de pecado. Porém, levada pelo medo e não pelo amor, de maneira que, se não houvesse Inferno, ela continuaria a transgredir os Mandamentos divinos.

Compreende-se que essa é uma disposição de alma muito inferior à primeira. Resultado: quem se arrepende por temor do Inferno só poderá ser perdoado no Sacramento da Confissão, pelos méritos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo que se acrescentarão a esse seu temor. O Salmo nos ensina, portanto, que o arrependimento verdadeiramente querido por Deus não é o do homem que tem medo do Inferno, e sim o do que possui um coração contrito. Mas, acrescenta: e humilhado. Ou seja, é preciso que a pessoa tenha vergonha diante de Deus e de si mesma, do horror que praticou, e se humilhe. Os sacrifícios de animais não bastam. Podem ser até um elemento do ato de reparação, uma circunstância boa e favorável exigida por Deus na antiga lei, mas não são suficientes. O sacrifício digno de Deus é o espírito compungido, o coração contrito e humilhado.

Prefigura do Reino de Maria

Senhor, sê benigno com Sião por tua boa vontade, para que se edifiquem os muros de Jerusalém.

O salmista passa a falar da própria cidade, Sião, intercedendo por ela junto ao Senhor: “Pela benevolência de tua vontade, ó Deus, porque és santo e és bom, e tua vontade é boa e te inclina ao bem, sê misericordioso para com Sião”.

Ele externa esse pedido porque a cidade de Sião pecou tanto quanto ele, e participam todos do mesmo cúmulo de infâmias. E a imagem dos muros de Jerusalém é muito apropriada, pois eles podiam ser destruídos pelo adversário como castigo. Naquele tempo, uma cidade sem muralhas não tinha valor, pois a qualquer momento podia sofrer a investida de inimigos, sem ter os anteparos que lhe possibilitassem a sua defesa.

Então, é como se o salmo dissesse:

“Jerusalém, pelo pecado, não merece nada, e está entregue à sua sorte. Mas, Senhor, a bondade de tua vontade, despertada pelo pranto de um coração contrito e humilhado, pode mudar os destinos dela nas tuas altas e sacrossantas ponderações. Senhor, sê benigno com Sião.”

Então aceitarás os sacrifícios legítimos; então serão colocados bezerros sobre o teu altar.

Entre outras interpretações, há aqui uma prefigura do Reino de Maria que foi previsto por São Luís Grignon de Montfort.

Como nos é grato imaginar a beleza dessa era marial, quando a Santa Igreja brilhará como uma cidade cujos muros foram fortificados! Muros altos, muros magníficos, com ameias, com barbacãs, cercando donjons e torres de ménage colossais, tudo ordenado segundo imenso esplendor.

E nessa ocasião, quando os homens tiverem corações contritos e humilhados, Deus aceitará também os dons materiais. Então será a época em que as fortunas se comprazerão em comprar pedrarias no Oriente e madeiras preciosas do Brasil a fim de confeccionar móveis para as Igrejas, para adornar os ostensórios, para honrar o Santíssimo Sacramento, para exaltar e super glorificar os altares de Jesus e de Maria….

Deus aceitará essas oferendas, porque serão apresentadas por corações contritos e humilhados. (Revista Dr. Plinio, Agosto/2003, n. 65, p. 6 a 9).

 
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