Fácil é perceber que os homens se influenciam mutuamente no relacionamento social. A criança emula os pais, um jovem músico inspira-se no mestre para executar uma melodia, os gestos de dois amigos tendem a se assemelhar, pois, conforme esclarece Aristóteles, a imitação é conatural aos homens desde a infância,1 distinguindo-os como a criatura mais imitativa de todas.

Ora, esse mimetismo inato vincado em nossa humanidade se verifica também no âmbito sobrenatural. Ensina a Revelação que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Contudo, o pecado original maculou essa primeira efígie, rompendo a ordem estabelecida entre Criador e criatura. A Redenção, por sua vez, resgatou nossa natureza decaída, reconciliando-nos com o Altíssimo.

Os Santos, verdadeiro caminho de acesso a Jesus

Vivemos, todavia, num vale de lágrimas. Sem uma união íntima com Jesus, facilmente nos desviamos para o lodaçal da iniquidade. Por isso, exige-se do cristão que procure se elevar a Ele de modo eficaz e radical e, para isso, nada melhor do que recorrer ao método mais natural: procurar converter-se em outro Cristo (alter Christus) através da imitação (imitatio Christi).

A leitura, a meditação e a pregação da Palavra de Deus certamente nos oferecem contato direto com Nosso Senhor, apresentando-O como exemplo a seguir (sequela Christi). Entretanto, esse efeito se torna ainda mais intenso quando buscamos nos espelhar nos heróis da Fé, reflexos do ideal evangélico em suas próprias vidas.

Conforme frisou Bento XVI, “os Santos constituem o comentário mais importante ao Evangelho, uma atualização sua na vida cotidiana e, por conseguinte, representam para nós um verdadeiro caminho de acesso a Jesus”.2 Podemos, sem dúvida, considerá-los como imagem de Deus transposta para o dia a dia.

O conceito de imitação de Cristo – diretamente ou através dos Santos – está presente nos Livros Sagrados, sobretudo nas cartas paulinas, como a destinada aos filipenses: “Sede meus imitadores, irmãos, e observai os que andam segundo o modelo que tendes em nós” (3, 17). Mas como isso ocorre?

“Vai e restaura minha casa em ruína”

Exemplo característico de imitação é o de São Francisco de Assis, em sua busca incessante de seguir em tudo as pegadas do Divino Mestre.

No prólogo da fonte mais respeitada sobre o Assisense, aprovada em capítulo geral, São Boaventura assegura: “A graça de Deus nosso Salvador manifestou-se nos últimos tempos em seu servo Francisco a todos os verdadeiramente humildes e amigos da santa pobreza”.3 Ele via na passagem de seu fundador entre os homens como que uma reedição da vinda de Cristo. Parecia imaginá-lo quase como um outro Jesus passeando novamente pelo mundo, não mais pela Palestina, mas pelos montes da Úmbria…

Em geral, o desabrochar de grandes vocações é prenunciado por sinais extraordinários, e com São Francisco de Assis não foi diferente. Antes de se lançar em sua aventura evangélica, o filho do rico comerciante Pietro di Bernadone teve um sonho premonitório, no qual vislumbrou um magnífico palácio com muitas armas prontas para o combate; e foi-lhe revelado que aquele armamento, e o próprio palácio, destinavam-se a ele e a seus cavaleiros.4

O jovem Francisco interpretou aquela visão como presságio de prosperidade material e sucesso na carreira militar. Com a esperança de receber em breve o título de cavaleiro, encaminha-se para a Puglia a fim de servir um nobre conde. Mas a glória para ele reservada não havia de ser alcançada na milícia terrena, e sim no cumprimento do ideal de cavalaria transposto para a vida religiosa.

Pouco depois, o próprio Jesus confirmou e esclareceu sua altíssima vocação, através da famosa manifestação do crucifixo de São Damião: “Francisco, vai e restaura minha casa que, como vês, está toda em ruína”.5

Modelo vivo para os seus discípulos

Mas como haveria de se cumprir tão importante missão?

Justamente pela perfeita imitatio Christi, conforme narra o franciscano Ângelo Clareno: “Cristo Jesus, Salvador nosso, aparecendo a ele, disse: ‘Francisco, segue-Me e calca as pegadas de minha vida pobre e humilde […]. Tu e todos os frades que te darei, vivei segundo a minha imitação como forasteiros e peregrinos, mortos para o mundo’”.6

Decidido a seguir o Divino Mestre em tudo, Francisco assumiu-O no lugar do pai, que começara a lhe investir feroz perseguição, acusando-o de insanidade.7 Não tardou em reunir alguns discípulos, aos quais concedeu esta norma de vida: “A nós, caríssimos, mais do que aos outros religiosos, convém seguir o exemplo da humildade e da pobreza de Cristo”.8 E bem cônscio estava de seu papel simbólico: “Devo ser modelo e exemplo para todos os frades”.9

Conformidades bíblicas entre Cristo e Francisco

Em muitas biografias, o Poverello é representado como um homem de particular santidade, providencial e profético, ímpar em toda a História, que a cindiria em duas partes. Por sua vocação toda especial, “Cristo o amou de modo singular”,10 concedendo-lhe o dom de personificar em si a Paixão por meio da impressão dos estigmas.

Para estabelecer relações entre a vida do Salvador e a do Assisense, os seus hagiógrafos se utilizavam com frequência de passagens da Escritura, objetivando apresentá-lo como perfeito imitador de Cristo. Assim o desenvolve, por exemplo, Frei Bartolomeu de Pisa (século XIV) em sua obra sobre as diversas conformidades bíblicas entre Cristo e o “varão angélico Francisco”.11

Essa forma de contemplar o fundador favorecia-o em seu amor à vocação e em sua imitatio Christi, de maneira a beneficiá-lo no cumprimento do próprio carisma. E isso por uma simples razão teológica: o Deus que Se encarnou em Jesus Cristo é o mesmo que deu a graça a São Francisco para imitá-Lo, bem como a inspiração a seus filhos para segui-Lo por seu intermédio.

O louvor a Francisco não se realizava em detrimento da adoração a Nosso Senhor, antes, pelo contrário, a incentivava. Na realidade, o franciscano só atingiria a santidade imitando seu santo fundador, nos moldes da exortação do Apóstolo: “A reverência a quem é devida; a honra a quem é devida” (Rm 13, 7). Nesse caso, a imitação não seria mera opção, mas sim uma necessidade.

“Considero o Bem-aventurado
Francisco um espelho santíssimo
da santidade do Senhor”

Nosso Senhor Jesus Cristo e
São Francisco de Assis
Catedral de Palma de Maiorca
(Espanha)

Configurou-se com o Divino Arquétipo

O Beato Tomás de Celano, que o conheceu pessoalmente, fornece claves para a compreensão da doutrina da imitatio Christi em seu fundador: “Considero o Bem-aventurado Francisco um espelho santíssimo da santidade do Senhor e imagem da perfeição d’Ele (cf. Sb 7, 26). Eu diria: todas as suas palavras e ações exalam, por assim dizer, um perfume divino”.12

De modo semelhante, a obra anônima Espelho de perfeição enfatiza o papel do Poverello como modelo, à maneira de farol que ilumina seus discípulos para a perfeita imitação do Divino Mestre. Nessa hagiografia, Francisco é caracterizado como “fiel servo e imitador perfeito de Cristo, sentindo-se completamente transformado n’Ele por força da santa humildade”.13

Note-se aqui que o próprio Santo percebia em si a sua configuração com o Divino Arquétipo. Com esses qualificativos o autor anônimo almejava evidenciar que seu fundador era um alter Christus, cujo exemplo os frades deviam imitar para, em última instância, conformarem-se a Cristo.

Guia, mestre e arauto da perfeição evangélica

A explícita intenção de apresentar o Santo como efígie do Homem- -Deus presente nessa obra, esclarece que, para os frades menores, a sequela Christi se realiza no seguimento do fundador da família religiosa à qual foram chamados.

Francisco tornou-se para eles um livro aberto de virtudes, um exemplo a ser praticado. Cada capítulo de sua vida está marcado pelo intenso convívio com seus filhos espirituais e, após a morte, pelos favores de sua intercessão por eles na terra, os quais lhe retribuíam com ainda maior fervor e admiração.

Embebeu-se também da Palavra de Deus, assimilando-a em si por particular auxílio sobrenatural, conforme retrata São Boaventura: “Não é despropositado julgar que este santo varão tenha recebido de Deus o dom da compreensão das Escrituras, uma vez que pela imitação perfeita de Cristo demonstrava com suas obras a verdade nelas proclamada e, pela plenitude do Espírito Santo que nele habitava, portava em si o seu Divino Autor”.14

De fato, mesmo desprovido de aprofundados estudos, o Poverello era modelo na interpretação dos textos bíblicos. Um verdadeiro “guia, mestre e arauto da perfeição evangélica”,15 em todos os sentidos.

Identificado com um Anjo do Apocalipse

Além de apontar nele a imitatio Christi, os biógrafos do Assisense não temiam realçar a grandeza de sua vocação, servindo-se de ousadas analogias e alegorias, e comparando-o a Noé, Elias e São João Batista, entre muitas outras figuras bíblicas.

Desse recurso se valeu o Papa Gregório IX ao redigir a bula de canonização do Esposo da Senhora Pobreza: “Eis o Senhor que, enquanto destruía a terra com a água do dilúvio, guiou o justo em uma desprezível arca de madeira (cf. Sb 10, 4), não permitindo que a vara dos pecadores prevalecesse sobre a sorte dos justos (cf. Sl 124, 3), na hora undécima suscitou seu servo o Bem-aventurado Francisco, homem verdadeiramente segundo o seu coração (cf. I Sm 13, 14), lâmpada desprezada no pensamento dos ricos, mas preparada para o tempo estabelecido, mandando-o para a sua vinha para arrancar seus espinhos e espinheiros, depois de ter aniquilado os filisteus que a estavam assaltando, iluminando a pátria, e para que a reconciliasse com Deus, admoestando com assídua exortação (cf. Jz 15, 15)”.16

Ademais, o Santo Estigmado era também identificado com o Anjo que surge do Oriente portando o selo do Deus vivo, isto é, as marcas da Paixão (cf. Ap 7, 2). É o próprio Seráfico Doutor quem elucida esse assunto no prólogo de sua célebre Legenda maior: “Esse arauto de Deus, digno de ser amado por Cristo, imitado por nós e admirado pelo mundo é o servo Francisco. Constatamo-lo com certeza vendo como ele alcançou o ápice da mais excelsa santidade e como, vivendo no meio dos homens, imitou a pureza dos Anjos ao ponto de ser colocado como exemplo de perfeição para os seguidores de Cristo”.17

“Vivendo no meio dos homens, imitou a
pureza dos Anjos ao ponto de ser colocado
como exemplo de perfeição para os
seguidores de Cristo”

São Francisco de Assis,
alferes real de Cristo, por Basílio de Santa Cruz
Museu de São Francisco, Santiago (Chile)

São Luís o imitou como ele imitou a Cristo

Para o homem contemporâneo, habituado ao pragmatismo, essas analogias entre Cristo e Francisco poderiam parecer despropositadas ou mesmo maldosamente tachadas de “culto à personalidade”.

Nada de mais injusto ou afastado da realidade. As homenagens prestadas ao Poverello, mesmo em vida, nada tinham de artificial, pois as multidões acorriam naturalmente para aclamá-lo e venerá-lo: “O povo prestava atenção em suas palavras como se falasse um Anjo do Senhor”.18 De resto, era ele reconhecido por sua genuína humildade, que se traduzia no esforço em evitar a divulgação do milagre dos estigmas ou na renúncia ao presbiterado, por considerar-se indigno de recebê-lo.

A imitatio Francisci como forma de imitatio Christi não era uma ideia inusitada na época do Santo de Assis e nos séculos posteriores. São Luís IX, rei de França e terciário franciscano, foi comparado com Francisco de diversos modos, inclusive nos textos dos ofícios litúrgicos dedicados ao venerável monarca.

Seu combate contra os sarracenos foi equiparado à luta do Poverello contra o pai para se entregar a Deus. Comparava-se o fato de que ambos saíam para alimentar os leprosos, construíram igrejas e serviam os pobres com generosidade e compaixão. E isso de tal forma que, analisando a memória litúrgica do nobre soberano francês, uma estudiosa britânica contemporânea chegou a afirmar: “Luís imitou a Francisco da mesma maneira que Francisco imitou a Cristo”.19

Imitemos Clara, imagem da Mãe de Deus

Inúmeros imitadores teve, e continuará tendo, esse perfeito imitador de Cristo. Entre eles refulge de modo particular Clara de Assis, a santa fundadora do ramo feminino dos franciscanos. A exemplo de seu pai espiritual, também deixou um testamento delineando as sendas a serem palmilhadas pelas seguidoras do Poverello: “O Filho de Deus Se fez para nós o Caminho, e nosso beatíssimo pai Francisco, amoroso imitador d’Ele, nos mostrou e explicou este Caminho, por palavra e exemplo”.20

Analogicamente, assim como São Francisco é alter Christus, Santa Clara, sua discípula perfeita, é identificada como altera Maria, entre outras razões, por imitar de modo eminente a seu pai espiritual. Nesse sentido, no hino Concinat plebs fidelium, do Papa Alexandre IV (†1261), a mais famosa filha espiritual do Poverello é chamada de “vestígio da Mãe de Cristo” e as irmãs do Mosteiro de São Damião não hesitaram em proclamá-la como tal: “As mulheres imitam a Clara, imagem da Mãe de Deus, nova guia das mulheres”.21

Nesse diapasão se encontra um círculo de imitação de Cristo por inspiração das Sagradas Escrituras, que se torna ainda mais alargado por sua transposição nos Santos, “pedras vivas” da Igreja.

O Poverello aponta Cristo para Clara como modelo a seguir: “Eu, pequenino Frei Francisco, quero seguir a vida de pobreza de nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe Santíssima e perseverar nela até o fim; e vos rogo e aconselho, senhoras minhas, que vivais sempre nesta santíssima vida de pobreza”.22 A Santa, por sua vez, ensina a suas discípulas: nosso pai espiritual é o caminho de santificação. E as clarissas se estimulam mutuamente: imitemos Clara, imagem da Mãe de Deus. E assim por diante…

Da cascata de graças que jorra do Homem-Deus, Maria Santíssima, como Medianeira, as transmite profusamente para os Santos. Eles as recebem e as difundem, como faróis para seus seguidores pela imitação de Cristo. O povo, por sua vez, se inspira na imitação desses heróis da Fé. A santidade é radiante e está ao alcance de todos através de tantos exemplos. Basta começar a imitar…23 (Revista Arautos do Evangelho, Outubro/2018, n. 202, p. 16-19)

1 Cf. ARISTÓTELES. Poética, c.IV. 2 BENTO XVI. Audiência geral, 20/8/2008. 3 SÃO BOAVENTURA DE BAGNOREGIO. Legenda maior, pról., n.1 (FF 1020). A numeração dos escritos e biografias de São Francisco de Assis (FF) foi tomada de: MENESTÒ, Enrico; BRUFANI, Stefano (Ed.). Fontes Franciscani. Assisi: Porziuncola, 1995. Ou, em certos casos, da tradução italiana atualizada (FFI): PAOLAZZI, Carlo (Org.). Fonti Francescane. 3.ed. Padova: Francescane, 2011. 4 Cf. Idem, c.I, n.3 (FF 1031). 5 BEATO TOMÁS DE CELANO. Segunda vida de São Francisco, I, c.6, n.10 (FF 593). 6 ÂNGELO CLARENO. Livro das crônicas ou das tribulações da Ordem dos Frades Menores, pról. (FFI 2124). 7 Cf. BEATO TOMÁS DE CELANO, op. cit., I, c.7, n.12 (FF 596-597). 8 ESPELHO DE PERFEIÇÃO, c.XX (FF 1703). 9 Idem, c.XVI (FF 1699). 10 ÂNGELO CLARENO, op. cit., pról. (FFI 2114). 11 BARTOLOMEU DE PISA. De conformitate vitæ beati Francisci ad vitam Domini Iesu Redemptoris nostri, prol. 1. In: Analecta Franciscana. Florentiæ: Quaracchi, 1906, t.4, p.2. 12 BEATO TOMÁS DE CELANO, op. cit., II, n.26 (FF 613). 13 ESPELHO DE PERFEIÇÃO, c.LXXIII (FF 1768). 14 SÃO BOAVENTURA DE BAGNOREGIO, op. cit., c.XI, n.2 (FF 1189). 15 Idem, pról., n.1 (FF 1020). 16 GREGÓRIO IX. Bula Mira circa nos, 16/7/1228. 17 SÃO BOAVENTURA DE BAGNOREGIO, op. cit., pról., n.2 (FF 1022). 18 Idem, c.XII, n.12 (FF 1221). 19 GAPOSCHKIN, Marianne Cecilia. Louis IX and Liturgical Memory. In: BRENNER, Elma; COHEN, Meredith; FRANKLIN-BROWN, Mary (Ed.). Memory and Commemoration in Medieval Culture. Farnham: Taylor and Francis, 2013, p.274. 20 SANTA CLARA DE ASSIS. Testamento, v.5 (FFI 2824). 21 BEATO TOMÁS DE CELANO. Legenda de Santa Clara. Carta de introdução ao Papa Alexandre IV (FF 3153). 22 SÃO FRANCISCO DE ASSIS. Última vontade escrita para Santa Clara, n.1-2 (FF 140). 23 Este artigo é uma adaptação de: São Francisco de Assis como alter Christus pela imitação de Cristo: fontes e interpretação. In: Lumen Veritatis. São Paulo. Ano X. N.40 (Jul.-Set., 2017); p.265-298.