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História da Igreja


Caminho para o encontro com Deus e seus mistérios
 
AUTOR: PE. FERNANDO NÉSTOR GIOIA OTERO, EP
 
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Desde a sua origem, o Cristianismo compreendeu o valor das artes e utilizou suas multiformes linguagens para comunicar a imutável mensagem da salvação.

A manifestação da fé, na Igreja e pela Igreja, não se restringe a uma atitude interior. Ela se dá também “mediante uma série de expressões exteriores, tendentes a evocar e sublinhar a grandeza do acontecimento celebrado”,1 ensina São João Paulo II.

Se, de certo modo, os atos litúrgicos podem ser realizados com alguma dignidade em qualquer lugar, revestindo-se de paramentos simples e utilizando-se de alfaias de pouco valor artístico, contudo, “no desenvolvimento da Igreja como sociedade católica cultual, o tema artístico é muito digno de ser considerado, pois em toda manifestação externa do culto deve-se buscar sempre a maior dignidade e o máximo decoro”.2

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Cortejo final de uma Missa celebrada no altar da Basílica de São Pedro, 16/5/2014

Através dos objetos utilizados no culto pode-se fomentar a compenetração em relação ao mistério ali vivido, bem como a piedade e a tão desejada participação plena, consciente e ativa dos fiéis. “A arte há de ser um elemento expressivo, digno e funcional no espaço e no ambiente da celebração”.3 Por isso é bom e salutar procurar o que se pode chamar de obra de arte, pois na celebração litúrgica “nada deve ser vulgar, precipitado, improvisado; tudo requer harmonia, dignidade, reverência”.4

É preciso ressaltar, então, a importante ação evangelizadora exercida pela transmissão da beleza através destes elementos, se os objetos atinentes ao culto forem “dignos, decorosos e belos, verdadeiros sinais e símbolos do sobrenatural”.5

Constante preocupação dos Papas

São Pio X, no Motu Proprio Tra le sollecitudini, fomenta a restauração da música sacra, destacando o primordial papel da arte na liturgia: “A Igreja tem reconhecido e favorecido sempre o progresso das artes, admitindo ao serviço do culto o que o gênio encontrou de bom e belo através dos séculos, salvas sempre as leis litúrgicas”.6

Também Pio XI, na Constituição Apostólica Divinis cultus, afirma: “É, portanto, muito importante que tudo o que está destinado à beleza da liturgia seja regulado por leis e prescrições da Igreja, de modo que as artes sirvam realmente, como ­deve ser, quais nobres servas do culto divino”.7

Sublimando a dimensão litúrgica, diz Pio XII na Encíclica Mediator Dei: “tudo, quer nos edifícios sagrados, quer nas vestes e nas alfaias litúrgicas, ainda que não brilhe por excessiva riqueza e esplendor, seja, todavia, apropriado e limpo, estando tudo consagrado à Divina Majestade”.8 E na Encíclica Musicæ sacræ este mesmo Pontífice assegura não ter a arte religiosa “outro escopo a não ser o de ajudar poderosamente os fiéis a elevar piedosamente sua mente a Deus, agindo ela, por meio de suas manifestações, sobre os sentidos da vista e do ouvido”.9

Em sua famosa Carta aos artistas, São João Paulo II mostra os efeitos do ambiente descristianizado dos últimos séculos, que “levou por vezes a uma certa separação entre o mundo da arte e o da Fé, ao menos no sentido de um menor interesse de muitos artistas pelos temas religiosos”.10 Não foram outros os motivos para a Sacrosanctum Concilium advertir com severidade para serem rejeitadas as obras artísticas que “não se coadunam com a Fé”.11

Um entrechoque de tendências

Neste delicado tema, não foi pequeno o entrechoque entre ­duas marcadas tendências, durante os trabalhos pré-conciliares. Uns eram contra o que poderia ser um gasto maior para a construção e ornamentação das igrejas, confecção de custosos paramentos ou vasos sagrados de celebração, com a utilização de recursos que, em última análise, julgavam que poderiam ser destinados aos pobres. “Diferentes padres manifestaram o desejo de que a Igreja suprimisse todo luxo desnecessário no culto divino”.12

Harmonia entre arte e religião
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Outros, em sentido oposto, argumentavam que se deveria dispor para o serviço de Deus do melhor, baseando-se na resposta de Nosso Senhor à murmuração de Judas Iscariotes – que na verdade não se interessava pelos pobres, e sim pelo dinheiro, porque era ladrão (cf. Jo 12, 6) -, no episódio da mulher que derramou sobre a sua divina cabeça um valioso perfume de nardo, e no fato de Ele não haver rejeitado esta “luxuosa” homenagem. Cristo, que Se fez pobre e pedia a pobreza aos Apóstolos, pelo contrário, elogiou aquele gesto. “Jesus disse-lhes: Deixai-a. Por que a molestais? Ela me fez uma obra boa. Vós sempre tendes convosco os pobres e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem; mas a Mim não Me tendes sempre” (Mc 14, 6-7). Portanto – perguntavam os desta tendência -, não é legítimo praticar a virtude da magnificência no que se refere ao culto divino? Isto em nada fere o espírito de pobreza.

Evitando um confronto, a proposta conciliar final, a respeito da liturgia e da arte sacra, terminou por recomendar que “prefiram os Ordinários à mera suntuosidade uma ­beleza que seja nobre. Aplique-se isto mesmo às vestes e ornamentos sagrados”.13

Não confundir beleza com ostentação

Ocorre, muitas vezes, que se confunde equivocadamente beleza com luxo, e se acaba optando – para evitar, ademais da “mera suntuosidade”, “a ostentação”14 – pelo que poderíamos considerar não só uma falta de requinte, mas também o mau gosto e a vulgaridade. É o que vemos com frequência na arte sacra contemporânea, em alguns estilos de arquitetura religiosa e em determinados ambientes católicos.

O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, pode expressar “a verdade da sua relação com o Deus Criador pela beleza das ­suas obras artísticas”.15 Não obstante, com frequência, sob o pretexto de simplicidade evangélica ou de austeridade, chega-se a depauperar o culto divino tirando-lhe sua grandeza, tanto na arquitetura desprovida de encanto, na música afastada do sagrado, nas imagens de linhas estranhas e pobres em arte, ou mesmo no uso de objetos sacros de gosto discutível e até feitos com material de qualidade inferior ao nobre Sacramento celebrado.

Desde a Antiguidade, o homem, movido pela piedade, ofereceu os mais belos de seus artefatos nos atos de adoração a Deus, como nos atesta o Antigo Testamento. Com o Cristianismo, idêntico sentimento se manifestou entre os fiéis, testemunhado, por exemplo, pela construção de majestosos templos cristãos já nos primeiros séculos. Como se sabe, muitos deles haviam sido palácios de patrícios ou de ricos proprietários que os doavam à Igreja, conservando-se vários ainda hoje. Sua suntuosa e admirável decoração interior são prova da devoção e generosidade dos fiéis, incentivadas pela Igreja nascente.

Nas pegadas de São Francisco de Assis

Nosso Senhor Jesus Cristo não pediu a prática da pobreza no referente ao culto divino. Desposado misticamente com ela, São Francisco de Assis compreendeu bem este conselho evangélico e rogava a seus filhos espirituais, seguidores de seu particular espírito de pobreza, que honrassem todas as coisas relativas ao Santíssimo Sacramento e à liturgia.

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“Os cálices, os corporais, os ornamentos do altar e
tudo quanto pertence ao Sacrifício, tenham como
coisas preciosas” (São Francisco de Assis)


São Francisco em êxtase, por Pedro de
Mena – Catedral de Toledo (Espanha)

Escreveu ele em uma ocasião: que “os cálices, os corporais, os ornamentos do altar e tudo quanto pertence ao Sacrifício, tenham como coisas preciosas. E se, nalguma parte, o Santíssimo Corpo do Senhor estiver com muita pobreza abandonado, que eles, como manda a Igreja, O coloquem em um lugar precioso e bem guardado”.16 Exemplo concreto desta mentalidade podemos apreciar no exterior rústico e sóbrio da Basílica de Assis, em contraste com seu interior cheio de esplendor.

Sem dúvida, “o ornato realça a beleza das coisas, assim como o verniz salienta a nobreza e a qualidade de uma madeira”.17 E “o enfeite ornamental, a arte decorativa são, neste sentido, elementos fundamentais da vida neste mundo”.18

Como nos ensina o Catecismo da Igreja Católica, “a arte sacra é verdadeira e bela quando corresponde, pela forma, à sua vocação própria: evocar e glorificar, na fé e na adoração, o mistério transcendente de Deus”.19

Ambientes que favorecem a ação do sobrenatural

A celebração litúrgica bela, em seus ornamentos, no cerimonial, no canto, nas construções, arrebata as almas para o sobrenatural e lhes dá estímulo para abandonar as vias do pecado, progredindo na virtude.

Por esta razão, em outros tempos “a arte dos templos era um livro onde aprendiam os fiéis as verdades da Fé. Foi uma cultura de imagens, que perdura inclusive depois de a imprensa nos introduzir na cultura da ideia e da linguagem”.20 Assim como há melodias capazes de criar um ambiente favorável ao recolhimento, à oração, à elevação do espírito, ao equilíbrio interior, por seu efeito apaziguador, é imperioso constatar como os ambientes influenciam a fundo o espírito humano, tanto para o bem como para o mal.

Isto porque “existe uma profunda interação entre o homem e o espaço que o rodeia. O homem se reflete nele e, por conseguinte, comunica algo de si mesmo a outros”.21 Deste modo, gerações de fiéis pervadidos pelo espírito católico edificaram catedrais românicas e góticas que nos deleitam com sua magnificência arquitetônica, e com a força de sua presença simbólica constituem espaços que exercem uma sacral influência sobre as pessoas. Porque “o espaço litúrgico e seu adorno têm uma grandíssima importância em vista de uma evangelização correta, nova e adequada”.22

A arte sacra deve estar a serviço da liturgia

Como indica Paulo VI, a “arte é um meio de incomparável eficácia para a evangelização”.23 Se bem que a Igreja não tenha considerado como próprio nenhum estilo, incentiva aos Ordinários a promoverem e fomentarem “uma autêntica arte sacra”,24 com a exclusão das obras que “não se coadunam com a Fé e os costumes e com a piedade cristã, ofendem o genuíno sentido religioso, quer pela depravação da forma, quer pela insuficiência, mediocridade ou falsidade da expressão artística”.25
A arte sacra deve, portanto, estar a serviço da Religião e, havendo meios materiais, não se deve evitar o artisticamente belo por ser mais custoso, optando-se pelo feio que dará menos gastos… Argumento, aliás, bastante discutível! Não coadunar com a Fé, os costumes e a piedade; depravação da forma; insuficiência, mediocridade ou falsidade da arte… quantos qualificativos para identificar o estilo de arte que a Sacrosanctum Concilium considerava contrário à beleza.

Não podemos negar que, em aspectos como o da funcionalidade, houve progressos técnicos nas construções modernas. Porém, é preciso considerar “a incidência negativa produzida, sem dúvida, no campo da criação artística religiosa e da destinada à liturgia, pelo clima sociocultural envolvente, caracterizado pelo pensamento débil, pelo vazio espiritual, pela perda de valores morais e pela secularização”.26

Esta produção artística, em geral – e no campo do sagrado, em especial – feita por especialistas influenciados pelo mundo paganizado deu lugar a expressões que não refletem a arte sacra, chegando, em não poucos casos, “a ofender o genuíno sentido religioso”.

O mundo tem necessidade de beleza

Tudo isto ressalta o motivo pelo qual Paulo VI incentiva os artistas a seguirem o caminho do pulchrum: “Este mundo em que vivemos tem necessidade da beleza para não cair na desesperança. A beleza, como a verdade, é que dá alegria ao coração dos homens; é o fruto precioso que resiste à usura do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração”.27

Neste sentido, a conhecida Carta aos artistas de São João Paulo II, de 1999, é ponto de referência no tema da relação fé-arte-beleza. Nela o Pontífice mostra como a Igreja tem necessidade da arte – mas de uma arte bela – para a transmissão do Evangelho, pois “a arte possui uma capacidade muito própria de captar os diversos aspectos da mensagem, traduzindo-a em cores, formas, sons que estimulam a intuição de quem os vê e ouve. E isto, sem privar a própria mensagem de seu valor transcendente e de seu halo de mistério”.28

Este chamado aos artistas, feito de maneira insistente desde o fim do Concílio Vaticano II, pareceria não ter tido penetração. A crise do mundo moderno tem levado os homens a perderem a noção dos mistérios de nossa Fé e o espiritual parece haver-se diluído.

Diante dos mais admiráveis monumentos legados pela Civilização Cristã, muitos não reagem como deveriam, não se deixam arrastar por aquele “Oceano infinito de beleza, onde o assombro se converte em admiração, inebriamento, alegria inexprimível”.29 É o efeito do adormecimento produzido nas almas pela secularização da vida moderna.

Tem a arte e a beleza o chamado de despertar a humanidade de seu letargo, levando-a a redescobrir a profundidade desta dimensão espiritual e religiosa, pois “a aliança que sempre vigorou entre o Evangelho e a arte” implicava, para os artistas, num convite para “penetrar, pela intuição criativa, no mistério de Deus Encarnado e contemporaneamente no mistério do homem”.30

Uma “via pulchritudinis”

Assim como Deus Se manifesta pela formosura da criação – “narram os céus a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 18, 2) -, também as obras do homem reto refletem o encanto da virtude. Existe, pois, uma relação entre a beleza material e a moral. Esta relação íntima é o fundamento de uma via pulchritudinis, ou seja, é preciso usar a beleza em suas mais variadas formas como meio de evangelização, para levar as almas a Deus, que é a Beleza em essência. Pois, todo o belo existente reflete de algum modo este atributo divino. Amar a beleza, enlevar-se com ela, é um meio de crescer no amor a Deus.

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Interior da Basílica de São Franciso – Assis – Itália

Como bem disse Bento XVI aos artistas, no encontro realizado na Capela Sistina, em novembro de 2009, “a arte, em todas as suas expressões, no momento em que se confronta com as grandes interrogações da existência, com os temas fundamentais dos quais deriva o sentido do viver, pode assumir um valor religioso e transformar-se num percurso de profunda reflexão interior e de espiritualidade”.31 É a arte sacra autêntica, bela e verdadeira, um instrumento que “leva o homem à adoração, à oração e ao amor a Deus, Criador e Salvador, Santo e Santificador”.32

Nesta via pulchritudinis, mais uma vez se une à arte sacra – e fazendo parte dela – a liturgia, com sua beleza e sua inigualável função evangelizadora, pois necessita ela expressar-se através de uma linguagem e também de sinais. Não que a arte seja imprescindível à liturgia, mas lhe é muito conveniente, porque “a arte não é um artifício da liturgia, um valor anexado, e sim parte essencial de sua linguagem. Por isso se poderia qualificar a arte religiosa como ‘lugar teológico’, quer dizer, caminho para o encontro com Deus e seus mistérios”.33 ² (Revista Arautos do Evangelho, n. 162, Junho/2015, p. 20 a 25)

 
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