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A sã teologia dispensa o amor a Deus?
 
AUTOR: PE. JUAN CARLOS CASTÉ, EP
 
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O conhecimento e a virtude são independentes? Recorda-nos Bernardo de Claraval que, sem uma fé profunda em Deus, alimentada pela oração e pela contemplação, os estudos teológicos correm o risco de se tornarem uma vã prática intelectual.

“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a Religião ­instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer”.

Com estas luminosas palavras, quis Leão XIII prestar homenagem à Idade Média, época histórica de cujo auge se poderia dizer que nela a Fé cristã vivia uma verdadeira primavera refletida tanto na esfera religiosa quanto no âmbito civil da sociedade. E, por certo, um dos “frutos superiores a toda expectativa”, de que fala o célebre Pontífice, é a teologia.

Uma “teologia de joelhos”

“Teologia de joelhos”, esta feliz expressão de um Papa teólogo, ­Bento XVI, indica a teologia nascida do amor, da piedade, da contemplação de Deus e dos seus mistérios, mas, ao mesmo tempo, em íntima união entre a fé e a razão.

Seria um erro julgar que os teólogos medievais viviam enclausurados numa biblioteca, apertando a cabeça, sempre em abstrações para elaborar seus raciocínios e especulações teológicas, alheios às realidades da vida. Totalmente ao contrário! Sua teologia defluía, como um caudaloso rio, de uma vida interior irmanada ao pensamento.

Esta teologia denominada “teologia monástica”, produzida na Alta Idade Média, nasceu à sombra – ou à luz – das abadias e mosteiros, nos quais não só religiosos, mas também leigos, se adentravam no estudo da Sagrada Escritura. Na realidade, era um prolongamento da lectio divina que se desenrolava entre o canto das salmódias, a reflexão sobre a Palavra de Deus e os ensinamentos dos Santos Padres. “O mestre procurava verter na alma dos discípulos o fruto de sua experiência espiritual, construindo a teologia não como uma ­ciência no sentido estrito, segundo os usos da dialética aristotélica, mas como uma ciência do coração”.

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Esta feliz expressão de um Papa teólogo, Bento XVI, indica a teologia nascida
do amor, da piedade, da contemplação de Deus – 
Bento XVI reza o terço na Sala
Paulo VI durante a Jornada Europeia de 
Universitários, 10/3/2007

Esse verdadeiro progresso para a época tem sua raiz no impulso dado por vários fatores concomitantes. O primeiro deles foi a ação do imperador Carlos Magno e de seu conselheiro, Alcuíno de York. Monge de origem inglesa, dirigiu a escola palatina, exerceu intensa atividade intelectual e escreveu diversos opúsculos teológicos. Outros fatores foram os imensos benefícios espirituais da reforma gregoriana e a expansão de Cluny, cujo abade, Santo Odon, difundiu não só a regra de São Bento, mas também algo que se poderia denominar o “espírito monástico”, dando frutos de santidade e esplendor litúrgico, e despertando em toda a Europa a apetência de aprofundar-se no estudo da ciência de Deus. A alma de todos esses fatores, entretanto, foi um “sopro” de graças do Espírito Santo que percorreu a Europa inteira.

Teologia monástica e teologia escolástica

Não havia ainda universidades, e os estudos teológicos se realizavam em dois ambientes: os mosteiros e as scholæ, ou seja, as escolas da cidade. Daí surgiu a diferenciação ­entre “­teologia monástica” e “teologia escolástica”, como dois troncos de uma mesma árvore.

Elaborada por fervorosos monges nos claustros, a teologia monástica visava essencialmente alimentar nas almas o amor a Deus e o desejo das coisas celestes. Em consequência, ela se torna “meditação, oração, canto de louvor e chama a uma conversão sincera. Não poucos representantes da teologia monástica chegaram, por este caminho, às metas mais altas da experiência mística”.

A teologia escolástica, por sua vez, “era praticada nas scholæ, que surgiram ao lado das grandes catedrais da época, para a preparação do clero, ou em volta de um mestre de teologia e dos seus discípulos, para formar profissionais da cultura, numa época na qual o saber era cada vez mais apreciado”.

O método de estudo dos escolásticos era a quæstio, ou seja, o problema que se apresenta ao leitor na hora de analisar as palavras da Escritura e da Tradição. A formulação do problema suscita as perguntas e faz nascer o debate entre mestre e alunos, a disputatio. No debate aparecem, por um lado, os temas da autoridade e, por outro, os da razão; ele se orienta, assim, a encontrar por fim uma síntese entre autoridade e razão. A organização das quæstiones conduz ao aparecimento das summæ, que na realidade eram amplos tratados teológico-dogmáticos nascidos da confrontação entre a razão humana e a Palavra de Deus.

Diálogo entre fé e razão

Aqui se introduz a perene lição da teologia monástica. Fé e razão, em diálogo recíproco, vibram de alegria quando ambas estão animadas pela procura da íntima união com Deus. “Quando o amor vivifica a dimensão orante da teologia, o conhecimento, adquirido pela razão, alarga-se. […] O conhecimento cresce unicamente se ama a verdade. O amor torna-se inteligência e a teologia, autêntica sabedoria do coração”.

Estas esclarecedoras palavras de Bento XVI tornam fácil compreender como a teologia que floresceu nos séculos XI e XII preparou o ­caminho para o chamado “século de ouro da Escolástica”: o século XIII, no qual brilharam com especial fulgor São Tomás de Aquino e São ­Boaventura, entre tantos ­outros.

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“A clareza e o rigor lógico do pensamento
de Santo Anselmo tiveram sempre
como finalidade elevar a mente
à contemplação de Deus”

Santo Anselmo de Cantuária
Catedral de São Patrício, Nova York

Numerosos volumes seriam necessários para dar uma visão aproximada dos grandes santos teólogos surgidos nos mosteiros da Alta Idade Média. Limitar-nos-emos, pois, aqui, a dar uma visão à vol d’oiseau de dois de seus maiores expoentes, que marcaram por todos os séculos a História da Igreja e a teologia: Santo Anselmo de Cantuária e São Bernardo de Claraval.

Santo Anselmo de Cantuária

Nascido de família nobre no Vale de Aosta, Itália, em 1033, Anselmo ingressou na abadia cluniacense de Bec, na Normandia, onde levou uma vida de grande observância monacal. “Monge de intensa vida espiritual, excelente educador de jovens, teólogo com uma extraordinária capacidade especulativa, sábio homem de governo e defensor intransigente da libertas Ecclesiæ, da liberdade da Igreja, Anselmo é uma das personalidades eminentes da Idade Média”. Depois de Bec, o encontramos como Arcebispo de Cantuária, Inglaterra. Foi um dos grandes pré-escolásticos, inclusive há quem o considere o pai da Escolástica.

Dele é a famosa máxima “fides quærens intellectum – a fé procura entender”, de raiz agostiniana. É uma fórmula na qual percebemos esse consórcio entre a fé e a razão, belamente descrito no primeiro capítulo do seu Proslogion.

Santo Anselmo manifesta grande tendência à especulação, distinguindo-se assim da espiritualidade beneditina. Não é fácil separar, em suas obras, a teologia especulativa da mística. Bento XVI elogia em termos calorosos este insigne teólogo medieval “a quem a tradição cristã atribuiu o título de ‘Doutor Magnífico’, porque cultivou um desejo intenso de aprofundar os mistérios divinos […]. A clareza e o rigor lógico do seu pensamento tiveram sempre como finalidade ‘elevar a mente à contemplação de Deus’. Ele afirma claramente que quem tem a intenção de fazer teologia não pode contar somente com a sua inteligência, mas deve cultivar ao mesmo tempo uma profunda experiência de fé”.

Como não podia deixar de ser, esse grande “teólogo de joelhos” prestava à Virgem Mãe de Deus um ardoroso culto de amor. Não escreveu tratado algum sobre Ela, mas há em suas obras frases tão profundas e cheias de amor que influenciaram fortemente os estudos mariológicos. Não faltam autores que apontam Santo Anselmo como defensor da Imaculada Conceição, com base nas palavras de seu livro De conceptu virginali et originali peccato: “Convinha que a Mãe de Deus brilhasse com uma pureza tal que não se pode conceber maior depois de Deus”.

Evidentemente, esta frase não significa a Conceição Imaculada de Maria, tal como a Igreja definiu séculos mais tarde, mas indica um privilégio que não foi concedido a outro mortal. Ademais, estas palavras incluem precisamente uma das mais fortes razões teológicas que os autores costumam apresentar para demonstrar a existência da Imaculada Conceição de Maria, que consiste em suas relações com as três Pessoas da Santíssima Trindade, porque o próprio Unigênito do Pai, igual a Ele, era Filho da Virgem, e ao mesmo tempo A escolhera por Mãe, e o Espírito Santo como Esposa, da qual haveria de engendrar Aquele do qual Ele mesmo procedia. Portanto, ele não explicitou de modo claro a Imaculada Conceição, mas preparou o caminho para teólogos posteriores chegarem a essa conclusão.

Este grande Santo, que entregou sua alma a Deus em 21 de abril de 1109, “marca o século XI pela sua ciência, sua piedade, pelas suas lutas, e leva a Causa Católica à vitória. […] Considerando a vida dele, tem-se a impressão de uma fortaleza formidável, de um homem que encheu o seu tempo, venceu, e cuja glória perdura por todos os séculos por causa das vitórias que ele obteve em favor da Fé”.

São Bernardo de Claraval

Há outros grandes Santos e insignes teólogos, verdadeiros pilares da doutrina cristã, sobre os quais se assentou o edifício teológico no período medieval. Um deles brilhou como um sol, tanto pela santidade de sua vida quanto pela clareza e profundidade de sua doutrina: São Bernardo de Claraval, “chamado ‘o último dos Padres’ da Igreja, porque no século XII, mais uma vez, renovou e tornou presente a grande teologia dos Padres”.

Bernardo nasceu na Borgonha, França, terceiro dos sete filhos de uma nobre família. Recebeu esmerada educação dos monges de Châtillon-sur-Seine e demonstrou desde jovem sua enorme vocação.

Em 1112, quando ainda não completara 23 anos de idade, chegou ao Mosteiro de Cister, liderando um grupo de cerca de 30 outros nobres, todos em busca do mesmo ideal.

– Que desejais? – perguntou-lhes o abade, Santo Estêvão Harding.

Caindo de joelhos, respondeu Bernardo em nome de todos, usando a fórmula ritual:

– A misericórdia de Deus e a vossa.

Um monge que influencia a Igreja e a sociedade

Iniciou assim sua vida monacal esse grande Santo que, sob o hábito cisterciense, influenciaria profundamente a Igreja e a Cristandade em seu século e nos subsequentes.

São Bernardo.jpg
Sem uma fé profunda em Deus, as
nossas reflexões sobre os mistérios
divinos correm o risco de se
tornaremuma vã prática intelectual

São Bernardo – Mosteiro de Santa
Mariade São Salvador, Cañas
(Espanha)

Pouco depois de seu ingresso em Cister, confiou-lhe Santo Estêvão Harding a missão de fundar a Abadia de Claraval, que ele regeu até o fim de sua vida. Não tardou para que reis, príncipes, Bispos e até mesmo o Papa o consultassem, admirando a sua sabedoria.

Assistiu ao Concílio de Troyes em 1129, e em 1130 foi chamado ao Concílio de Étampes, onde, graças à sua intervenção, o rei da França, Luís VI, reconheceu como legítimo o Papa Inocêncio II, cuja eleição ao Sólio Pontifício vinha sendo contestada por um antipapa.

Em 1145, seu discípulo e amigo Bernardo Pignatelli, abade de um mosteiro cisterciense em Roma, foi eleito Papa com o nome de Eugênio III. Para esse seu filho espiritual elevado ao Sumo ­Pontificado, ­escreveu São Bernardo o tratado De Consideratione. Nesta obra, o santo doutor “não indica apenas como desempenhar bem o papel de Papa, mas expressa também uma visão profunda do mistério da Igreja e do mistério de Cristo, que no final se resolve na contemplação do mistério de Deus trino e uno”.

Apaixonado por Jesus e Maria

Analisando-a sob uma perspectiva teológica, Bento XVI ressalta dois aspectos centrais da obra doutrinária de São Bernardo. “Eles referem-se a Jesus Cristo e a Maria Santíssima, sua Mãe. A sua solicitude pela participação íntima e vital do cristão no amor de Deus em Jesus Cristo não contribui com novas orientações para o estatuto científico da teologia. Mas, de modo mais do que decidido, o abade de Clairvaux configura o teólogo com o contemplativo e com o místico. […] O santo abade descreve em termos apaixonados a íntima participação de Maria no sacrifício redentor do Filho. […] ‘A violência da dor trespassou de tal modo a tua alma, que justamente podemos chamar-Te mais do que mártir, porque em Ti a participação na Paixão do Filho superou muito em intensidade os sofrimentos físicos do martírio’. Bernardo não tem dúvidas: ‘per Mariam ad Iesum’, através de Maria somos conduzidos até Jesus. […] Estas reflexões, características de um apaixonado por Jesus e Maria como São Bernardo, provocam ainda hoje de modo saudável não só os teólogos, mas todos os crentes”.

Escritor prolífico

Em meio a uma vida cheia de grandes empreendimentos, soube o santo abade de Claraval encontrar tempo para escrever suas admiráveis obras, cujas doutrinas e espírito são o retrato de seu caráter e de sua época.

Ascende a 340 o número de seus sermões sobre os mais variados temas. Notáveis entre estes são os que tratam da Santíssima Virgem Maria, alguns dos quais ornados com as galas da poesia e das mais brilhantes imagens.

São Bernardo passou para a História também por sua importante contribuição para o desenvolvimento de algumas devoções cristãs. Concorreu decisivamente para difundir a adoração à humanidade santíssima de Cristo, de modo especial aos mistérios da infância de Jesus. Não tendo embora abordado a doutrina da Imaculada Conceição, exaltou a exímia santidade de Maria e desenvolveu o tema de sua mediação universal. A ele se atribuem importantes orações que propagaram a doutrina dessa mediação, como o Memorare (Lembrai-Vos) e a famosa antífona Salve Regina (Salve Rainha). Teve o inegável mérito de orientar os corações para São José; até então, o fiel guardião da virgindade de Maria não era objeto de um culto especial. Contribuiu também para divulgar a devoção aos Anjos da Guarda. Entretanto, a obra máxima da teologia mística do insigne abade é o Comentário ao Cântico dos Cânticos, composto de 86 sermões, nos quais expressa com clareza suas ideias sobre os estados místicos e os graus de oração.

Um dos supremos guias da Cristandade

São Bernardo adormeceu no Senhor em 20 de agosto de 1153, aos 63 anos de idade. Narra a crônica que, no momento de sua morte, apareceu à sua cabeceira a Mãe de Deus, que vinha colher a alma do Bem-aventurado. Antes de sepultá-lo, os monges de Claraval tiveram a feliz iniciativa de moldarem sua efígie mortuária, matriz de todas as imagens nas quais se mostra o santo abade “com as faces encovadas, cheias de rugas profundas, mas cuja testa ampla revela inteligência e cuja fisionomia irradia uma pureza maravilhosa”.

Decorridos nove séculos, um historiador de nossos dias resumiu nestas palavras o papel do fundador de Claraval: “Para a História da Igreja de Cristo, continua a ser a imagem mais perfeita do homem, tal como a Idade Média o pôde conceber, um dos supremos guias da Cristandade no seu caminho de luz, uma testemunha do seu tempo diante de Deus”.

Ultima Cena vitral Catedral de San Gatian de Tours.jpg
Devemos reconhecer, com São Bernardo, que “o homem procura melhor e encontra
mais facilmente Deus ‘com a oração do que com o debate'”

A Última Ceia (detalhe) – Catedral de Saint-Gatien, Tours

O Papa Pio VIII o proclamou Doutor da Igreja em 1830. E o Papa teólogo Bento XVI acentua a importância de sua vasta obra doutrinária para os estudos teológicos de todos os tempos: “Por vezes pretende-se resolver as questões fundamentais sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo unicamente com as forças da razão. São Bernardo, ao contrário, solidamente fundado na Bíblia e nos Padres da Igreja, recorda-nos que sem uma fé profunda em Deus, alimentada pela oração e pela contemplação, por uma relação íntima com o Senhor, as nossas reflexões sobre os mistérios divinos correm o ­risco de se tornarem uma vã prática intelectual, e perdem a sua credibilidade. A teologia remete para a ‘ciência dos Santos’, para a sua intuição dos mistérios do Deus vivo, para a sua sabedoria, dom do Espírito Santo, que se tornam ponto de referência do pensamento teológico. Juntamente com Bernardo de Claraval, também nós devemos reconhecer que o homem procura melhor e encontra mais facilmente Deus ‘com a oração do que com o debate’. No final, a figura mais verdadeira do teólogo e de cada evangelizador permanece a do Apóstolo João, que apoiou a sua cabeça no coração do Mestre”. (Revista Arautos do Evangelho, Setembro/2015, n. 165, pp. 16 a 21)

 
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