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História da Igreja


Deus fala por meio dos homens
 
AUTOR: IR. ALEJANDRO JAVIER DE SAINT AMANT
 
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Assim como no Antigo Testamento Deus suscitou Jeremias, para admoestar e aconselhar o povo a respeito do caminho que devia seguir, hoje Ele também suscita homens que nos guiem e orientem.

A destruição de Jerusalém pelas tropas caldeias no século VI a.C. e o posterior exílio para a Babilônia marcam uma grande linha de divisão na história do antigo Israel. De um só golpe, sua existência como nação termina e, com isso, todas as instituições que eram a expressão de sua própria vida coletiva. Com o Estado destruído e o culto oficial suspenso, o país passa a ser, naquele momento, um aglomerado de indivíduos arrancados de suas raízes e vencidos.1

Como pôde o Povo Eleito, temido por todas as nações em razão do poder de seu invencível Deus, cair em tão espantosa desgraça? Para encontrar os motivos desse acontecimento, de transcendental significado para a História Sagrada e para a exegese bíblica, comecemos por analisar o que poderíamos chamar de “situação internacional” daquela época.

Do apogeu assírio à hegemonia babilônica

O império assírio, que sob o governo de Assaradão (681-670) havia alcançado seu apogeu, durante o reinado de Assurbanípal (669-627) começa a sentir os primeiros sintomas de decadência. A independência do Egito, levada a cabo por Psamético I em 663, fundador da dinastia XXVI, foi seguida por revoltas na Fenícia e Babilônia. Depois da morte de Assurbanípal, o império entra na etapa final de sua existência.

Aproveitando as disputas pelo trono entre Assuretililani, seu irmão Sinsariskun e o general Sinshumulisir, o príncipe caldeu Nabopolasar proclama a independência da Babilônia e se faz eleger rei (626-605). A partir dali empreende uma série de ataques contra a Assíria, e em aliança com o rei dos medos, Ciáxares, conquista Assur em 614 e a capital Nínive em 612, onde morre o rei Sinsariskun, filho de Assurbanípal.

O último monarca assírio, Assur- Ubalit II, foge para Haram, onde consegue – apoiado pelo Egito – resistir durante três anos aos ataques de Nabopolasar. Finalmente, em 609, o rei caldeu conquista Haram e o império assírio chega a seu fim, sendo seu território dividido entre os vencedores.

A partir de então o poder da Babilônia começa a estender-se pelo Oriente Médio; sobretudo após a vitória do filho e sucessor de Nabopolasar, o grande Nabucodonosor, sobre o exército do faraó Necao na batalha de Karkemish (605 a.C.).

A Babilônia se havia convertido na soberana de toda a região e passa a gozar da hegemonia sobre o Oriente Próximo.2

Posição do Reino de Judá a favor do Egito

Na luta entre o Egito e a Babilônia, o Reino de Judá sempre se inclinará para o país do Nilo, trazendo como consequência expedições de Nabucodonosor, a última das quais acabou assediando Jerusalém, que foi tomada, saqueada e arrasada.

Durante um ano e meio as tropas caldeias cercaram a cidade, até que, em julho de 587,3 os soldados conseguiram abrir uma brecha nas muralhas e se precipitaram no seu interior. Sedecias, último rei de Judá, conseguiu fugir de noite com alguns soldados, mas foi capturado nas planícies de Jericó e levado à presença do rei caldeu, que estava em Ribla, na alta Síria. Ali, após ser obrigado a assistir à morte de seus filhos, foi cegado e levado prisioneiro para a Babilônia, como nos narra o capítulo 52 de Jeremias.

Terminado o cerco, Jerusalém foi devastada pelas tropas comandadas por Nabuzardã. A Bíblia nos diz que alguns judeus fugiram para o Egito (Jr 42-44); um grupo permaneceu na cidade (Jr 39, 10) e um grande número de habitantes foi deportado para a Babilônia (Jr 39, 9). “Pelos caminhos da Meia-Lua Fértil percorria novamente o povo da Promessa, como nos dias de Abraão; porém, não mais com fé e esperança, mas com miséria e abatimento”, comenta ilustrativamente o historiador Henri Daniel-Rops.4

Advertência de Jeremias

Durante o tempo que duraram esses acontecimentos, o profeta Jeremias sempre desaconselhou a aliança de Judá com o Egito e pregou, por inspiração divina, a submissão aos babilônios, pois Deus decidira entregar Jerusalém a Nabucodonosor.5

Renunciar à sua independência era algo muito duro para o povo judeu, mas essa era a vontade do Altíssimo, como castigo por tantos pecados cometidos. Por isso, apesar do perigo iminente, as palavras do profeta não encontram acolhida entre seus concidadãos.

O rei Sedecias, em um primeiro momento, segue os conselhos divinos. Contudo, como nos narra o capítulo 38 do livro de Jeremias, os inimigos do profeta conseguem persuadir o rei do “perigo” que significam esses oráculos para o povo (v.4). Fica patente a falta de personalidade do rei (v.5), que não tem suficiente valor para opor-se a essa injusta petição e permite que o homem de Deus seja preso em uma cisterna (v.6).

Posteriormente, graças ao etíope Abdemelec, Jeremias é liberado por ordem do próprio soberano (vv.7- 10), que tem um colóquio secreto com o profeta no qual se revela muito bem a situação em que se encontra: quer seguir os oráculos divinos para salvar sua vida, mas ao mesmo tempo teme seus oficiais (vv.14-19).

Pelos fins de 589, no “ano nono de Sedecias, no décimo mês” (Jr 39, 1), o rei decide, por fim, rebelar-se contra a Babilônia, provavelmente instigado pelo faraó Hofra. A catástrofe havia sido detonada.

A verdadeira causa do castigo

No segundo versículo do capítulo 37, o Livro de Jeremias nos aponta com total clareza a verdadeira causa do castigo sofrido pelo povo judeu: “Nem ele [Sedecias], porém, nem seus súditos e a população da terra escutaram os oráculos que lhes transmitia o Senhor, por intermédio do profeta Jeremias”.

O termo usado no original hebraico para referir-se à desobediência do povo judeu é shama, do verbo “escutar”. São Jerônimo, porém, opta na Vulgata pela expressão latina “non oboedivit” (não obedeceram), que se mantém em várias das traduções atuais. É interessante notar que não existe oposição entre ambas as versões, dado que o verbo “escutar” tem em hebraico um sentido amplo. Não se trata apenas de prestar atenção, mas também de abrir o coração, pôr em prática, obedecer.6

Acentuando a importância deste versículo para a correta compreensão dos acontecimentos posteriores, Schökel e Sicre comentam: “Este verso é programático e abarca o que segue até o fim de uma era. Temos aí dois poderes internos em confrontação: por uma parte, o rei e as pessoas influentes; diante deles, o profeta que esgrime a Palavra de Deus. A última frase nos remete à vocação de Jeremias que, com a palavra, recebe poder ‘sobre os reis’. Podia ser poder para ‘edificar’, a catástrofe era evitável; ao não escutá-lo, o povo provocou o poder ‘para arrancar'”.7

Justiça e misericórdia

Alguns comentaristas modernos acusam Jeremias, com argumentos absurdos, de haver-se vendido ao ouro da Babilônia. Outros elogiam sua clarividência política, e não cabe dúvida de que ele foi mais sensato que os políticos de seu tempo. Contudo não foi a sensatez que guiou sua conduta, mas o desejo de cumprir a vontade divina.8

Sabendo que Deus é justiça, mas também misericórdia, clamou o quanto pôde por seus irmãos, até que Deus o proibiu de interceder por eles: “Quanto a ti, não intercedas por esse povo. Não ergas em favor dele queixas ou súplicas e não insistas junto de mim, porque não te escutarei. Não vês o que faz ele nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém? Os filhos juntam lenha, os pais acendem o fogo e as mulheres sovam a massa para fazer tortas destinadas à rainha do céu, depois fazem libações a deuses estranhos, o que provoca a minha ira” (Jr 7, 16-18).

Apesar de a grande maioria de seu povo se opor, Jeremias teve sempre forças e ânimo para interceder por eles. Se seus contemporâneos tivessem dado importância a suas palavras, a catástrofe teria sido evitada e a tão temida submissão a Nabucodonosor haveria ocorrido em condições muito diferentes.

Deus nos fala na Mesa da Palavra

“Deus nos fala por meio de homens e segundo o modo humano, porque falando assim nos procura”.9

Assim como no Antigo Testamento, Deus suscitou Jeremias para advertir o povo judeu sobre o mau caminho que estava tomando e quais seriam as consequências caso não houvesse arrependimento, Ele também hoje suscita homens que nos apontam a vontade divina.

São às vezes simples leigos, mas não é o habitual. É do ambão, Mesa da Palavra, que Deus manifesta habitualmente seus desejos a respeito de cada um e nos inspira a pô-los em prática. Pela voz do pregador, algumas vezes nos anima, revitaliza e ampara; todavia, outras vezes aponta com inclemência nossos pecados, deixando-nos contritos e cheios de pesar.

Em ambos os casos – sobretudo no segundo – o ministro de Deus está atuando como pai, mestre e guia que busca nossa eterna salvação. Pois a justiça e a misericórdia divinas não são opostas, mas se complementam.10

Assim, pois, se em algum momento sentimos cair sobre nós o merecido peso da punição, recordemos que Deus nunca visa condenar, mas sim edificar. Tenhamos ânimo, procuremos emendar- nos e digamos, como o próprio Jeremias: “Corrigi- me, ó Senhor, mas com equidade, e não com furor, para que não sejamos reduzidos ao nada” (10, 24). (Revista Arautos do Evangelho, Fev/2010, n. 98, p. 31 à 33)

Notas:

1 Cf. BRIGHT, John. História de Israel. 7.ed. São Paulo: Paulus, 2003, p.411.
2 Cf. COUTURIER, Guy P.Jeremías. In: Comentario Bíblico “San Jerónimo”.Madrid: Cristiandad, 1971, t.I, p.791-792.
3 Não existe unanimidade entre os estudiosos a respeito dessa data; alguns creem que foi em 586. Seguimos a opinião de BRIGHT, op. cit., p.397, nota de rodapé.
4 DANIEL-ROPS, Henri.Historia Sagrada. Barcelona: Luis de Caralt, 1955, p.229.
5 É interessante recordar a descrição que Damien Noël faz da atuação de Jeremias, de um aspecto meramente político: “Jeremias é realista e não derrotista, e menos ainda é um traidor de sua pátria. Suas preocupações virão dos judeus pró-egípcios, não dos babilônios. Viverá o decênio do reinado de Sedecias na Jerusalém livre, desaconselhando- lhe até o fim a aliança com o Egito” (NOËL, Damien. En tiempo de los imperios. In: Cuadernos bíblicos nº 121. Navarra: Verbo Divino, 2004, p.15).
6 LÉON-DUFOUR, Xavier.Vocabulario de teología bíblica. Barcelona: Herder, 1965, p.250.
7 SCHÖKEL, Luis Alonso; SICRE, José Luis. Profetas.2.ed. Madrid: Cristiandad, 1987, v.I, p.588.
8 Idem, p.410.
9 SANTO AGOSTINHO, apud SCHÖKEL y SICRE, op. cit., p.17.
10 GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Teología de la Biblia. Madrid: BAC, 1970, v.I, AT, p.250

 
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