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História da Igreja


Ele fere, mas sua mão cura
 
AUTOR: DIÁC. THIAGO DE OLIVEIRA GERALDO, EP
 
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Aquele que Se deixou crucificar por nós permite que passemos muitas vezes pela dor e pela provação. Ele consente que nos firamos, mas cuida da nossa ferida com amor.

   Quem não se comove ao ler a história de Jó, homem “íntegro e reto, que temia a Deus e mantinha- se afastado do mal” (1, 1)?

   Sua riqueza, constituída por considerável rebanho de ovelhas, camelos, bois e jumentas, dava-lhe grande prestígio no Oriente. E seus sete filhos e três filhas marcavam-lhe a família com o inegável sinal da bênção divina. Deus premiava a virtude de Jó com a prosperidade nesta terra.

Satanás recebe permissão para tentar o justo

Jó com seus amigos – Paróquia da
Visitação, Limbourg (Bélgica)

   Ora, o ardiloso inimigo da humanidade pediu autorização ao Criador de todas as coisas para tentar este homem íntegro, ao que Deus respondeu: “Tudo o que ele possui está em teu poder. Mas não estendas a tua mão contra a sua pessoa” (1, 12).

   Sem perda de tempo, satanás fez cair uma aluvião de desgraças sobre aquele homem justo, fazendo- o receber quase simultaneamente as mais trágicas notícias: os sabeus – tribos nômades do ramo semita que praticavam a pilhagem – haviam-lhe roubado todos os bois e jumentas; as ovelhas do patriarca foram consumidas por um fogo que caiu do céu; os caldeus – habitantes do lado oriental do Rio Eufrates – levaram embora seus camelos; e para completar a medida dos infortúnios, todos seus filhos e filhas morreram ao serem derrubadas por um furacão as paredes da casa onde se encontravam.

   Diante de tais e tantas desditas, Jó não poderia ter tido uma atitude mais nobre. Rasgou suas vestes, rapou a cabeça em sinal de profunda dor e, prostrando-se por terra, pronunciou uma frase que se tornou proverbial: “Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor!” (1, 21).

   Tendo belamente perseverado na virtude, o patriarca saiu vitorioso no combate invisível contra o pai das trevas. Mas satanás obteve de Deus nova autorização, sem a qual nada pode fazer, e desta vez “feriu Jó com uma úlcera maligna, desde a planta dos pés até o alto da cabeça” (2, 7).

   Sua própria esposa, vendo- o prostrado e obrigado a raspar as feridas com um caco de telha, não aguentou contemplar tamanho sofrimento e, como fez Eva no Paraíso, incitou seu marido ao pecado, propondo que amaldiçoasse a Deus de uma vez. Mas Jó manteve-se íntegro diante do Altíssimo.

Três amigos se põem a caminho

   Jó era da região de Hus, que muitos exegetas identificam com o reino de Edom, ou da Idumeia, situado ao sul do Mar Morto.

   Assim como a fama de sua sabedoria se espalhara pelo Oriente, também seus infortúnios não ficaram ignorados. Três de seus amigos, próceres nas respectivas terras, quiseram comprovar com os próprios olhos a situação desse homem conhecido como virtuoso, reduzido agora à mais triste situação, e “combinaram ir juntos exprimir sua simpatia e suas consolações” (2, 11).

   Seus nomes eram Elifaz, Bildad e Sofar, e procediam, respectivamente, de Temã, Suás e Naamat, também situadas na região de Edom. Enquanto eles faziam os preparativos e se punham a caminho, decorreram sem dúvida muitos dias durante os quais Jó pôde refletir sobre sua vida e as ações de Deus.

   Quando os três amigos chegaram e viram de longe aquele homem dantes próspero e respeitado por sua virtude tiveram um sobressalto. Na mentalidade daquela época, as desgraças só sobrevinham àqueles que haviam cometido algum pecado.

   Seguindo o aparatoso estilo oriental, rasgaram as vestes e lançaram poeira ao ar, que logo em seguida caiu sobre suas cabeças. Compadecendo- se da situação de Jó, sentaram- se a seu lado, no chão, e ali permaneceram sete dias sem lhe dirigir a palavra. É a grandeza própria do Antigo Testamento, inconcebível para a mentalidade pragmática dos dias atuais.

Sabedoria e arrogância nos discursos

  A psicologia de cada um deles transparece de forma muito nítida nos discursos que eles farão após esses dias de silêncio, e que compõem a parte principal do Livro de Jó.

   Elifaz de Temã, o mais comedido deles, fala com a moderação da idade madura. É provavelmente o mais velho dos três e se supõe que também seja o mais sábio. “Os pensamentos nobres e ponderados são característica do ‘sábio’ de Temã, a Atenas dos ‘filhos do Oriente’”,1 observam nos seus comentários ao Livro de Jó os Professores de Salamanca.

   Bildad apela à sabedoria dos antigos mais do que à própria experiência. Mas falta-lhe a prudência da idade e, utilizando uma linguagem pouco hábil e apropriada, culpa a Jó com veemência pela morte dos seus filhos.

   Sofar é jovem e arrogante. Não tolera que Jó se proclame inocente. Para ele, como para os antigos, um homem justo jamais poderia passar por tais provações, reservadas para os malfeitores, que não cumpriam a Lei de Deus.

Jó rompe o silêncio

  Passados os sete dias de recolhimento e de dor, Jó rompeu o silêncio. Era o único que tinha o direito de fazê-lo. “Pereça o dia em que nasci e a noite em que foi dito: uma criança masculina foi concebida!” (3, 3), exclamou. E uma profunda lamentação pervadiu seu primeiro discurso.

   Longe de ser um pecado, esse lamento é a expressão da angústia pela qual passava sua alma por não entender os desígnios de Deus a seu respeito. Como sua dor diminuiria se, ao menos, soubesse a razão de tais sofrimentos! Mas nem isso lhe era concedido saber.

   Foi então que Elifaz, com palavras precisas e comedidas, introduziu o tema em torno ao qual vão girar os discursos dos três amigos: “Se arriscarmos uma palavra, talvez ficarás aflito, mas quem poderá impedir-me de falar?” (4, 2).

   Elifaz relembra que o próprio Jó foi um apoio para todos os que sofriam. Não havia conselheiro igual a ele. No entanto, Deus dispôs que passasse pelos piores sofrimentos. Jó deveria lembrar-se de que o Altíssimo não deixa o justo perecer e que ninguém é inocente perante o Criador, nem mesmo os Anjos: “Pode o homem ser justo na presença de Deus, pode o mortal ser puro diante do seu Criador? […] Até mesmo em seus Anjos encontra defeito” (4, 17-18).

   É a fraqueza dos homens que Elifaz quer ressaltar neste seu primeiro discurso. Ninguém merece nada diante de Deus e, portanto, Jó não pode reclamar de que Ele castigue as faltas que, sem dúvida, havia cometido.

   Para os homens daqueles longínquos tempos, muitos séculos anteriores à vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, a justiça divina premiava ou castigava a virtude ainda nesta terra: “Lembra-te: qual o inocente que pereceu? Ou quando foram destruídos os justos?” (4, 7).

   Aos olhos de Elifaz, Jó se encontrava num beco sem saída: Deus o castigava como pecador e ele insistia em sua inocência. Como poderia obter o perdão sem antes reconhecer sua culpa?

   Além do mais, aquelas antigas gentes desconheciam o efeito da graça santificante. Não podiam sequer imaginar a bondade que trasbordaria no olhar do Divino Redentor, nem cabia em suas cogitações a possibilidade de que um pecador recorresse a Maria Santíssima.

Palavras de Elifaz

São Gregório Magno sendo
inspirado pelo Espírito Santo –
Iluminura do Registrum
Gregorii, Stadtbibliothek,
Tréveris (Alemanha)

   Faltava-lhes, sobretudo, a noção do papel purificador do sofrimento. Sem ter ideia de que um inocente poderia passar por provações para aumentar seus méritos, Elifaz consignou em seu discurso um ensinamento válido para todos os séculos.

   O patriarca de Temã queria apenas que Jó reconhecesse sua culpa e confiasse no perdão divino, e por isso proclamou uma bem-aventurança: “Bem-aventurado o homem a quem Deus corrige! Não desprezes a lição do Todo-Poderoso” (5, 17). Com seu jeitoso discurso, Elifaz visa que seu amigo Jó evite cair em desespero e confesse quanto antes o seu pecado. Para isso, utiliza-se de uma imagem material que reflete uma realidade sobrenatural de extrema beleza: “Pois Ele fere e cuida; se golpeia, sua mão cura” (5, 18).

   Quantas vezes as pessoas se ferem com objetos pontiagudos ou cortantes! Para causar uma ferida, por vezes profunda, basta apenas um instante. No entanto, o processo de cicatrização é longo e penoso, e o local do ferimento se torna frágil até a cura completa.

   Enquanto a ferida está aberta, o corpo inteiro volta sua atenção para aquele ponto: os olhos procuram conhecer a gravidade do machucado e acompanhar os avanços da cura; os demais membros do corpo adquirem reflexos próprios a evitar qualquer choque com a região ferida; a circulação do sangue e os órgãos internos se mobilizam para facilitar a cicatrização, etc. Durante toda a convalescença, o corpo manterá este estado de alerta até que o ferimento tenha cicatrizado por completo.

   Podemos dizer, então, que a parte atingida foi objeto de interesse de todo o corpo, pois era a mais débil.

Um novo regime de graças

  Não falta certa sabedoria nas palavras do ancião Elifaz. E a visita dos três amigos para dar consolo ao patriarca sofredor é uma mostra desse organismo que se volta para o local onde foi ferido. Entretanto, vista à luz do Novo Testamento a bela imagem evocada pelo patriarca de Temã toma nova dimensão.

   Depois que Cristo morreu pelos nossos pecados, o regime da graça tornou-se outro. O Justo morreu pelos injustos, “padeceu a morte em sua carne, mas foi vivificado quanto ao espírito” (I Pd 3, 18). Vistos por esse prisma, os sofrimentos de Jó tornam-se uma tocante pré- -figura de Nosso Senhor Jesus Cristo e nos ensinam a sofrer em união com Ele. Quando a Providência nos faz passar pela dor e pela provação, pode ser que esteja querendo nos purificar dos pecados anteriormente cometidos, mas é também provável que queira nos fazer participar, em alguma medida, dos sublimes e frutíferos sofrimentos de Jesus.

   Tanto em um caso como no outro, lembremos que o nosso Criador e Redentor jamais deixará de cuidar da ferida. Quando permite que passemos pela provação, Ele quer ter um pretexto para cuidar de nós mais de perto e acompanhar o nosso processo de “cicatrização”.

Confiança total na Providência

  Procurando encontrar os pecados que levaram Jó àquele estado miserável, os discursos dos três amigos vão se prolongar pelos capítulos subsequentes da Sagrada Escritura, até que Deus decide intervir, proclamando a própria grandeza “do seio da tempestade” (40, 1).

   Jó era de fato inocente e, finalizado o período de provação, Deus lhe devolve à sua antiga prosperidade. Sua saúde se restabelece de forma instantânea. Foram-lhe restituídos todos os bens em dobro e foram- -lhe dados também novos filhos. E ainda obteve, por meio de um holocausto pacífico, o perdão dos três amigos que não tinham falado bem do Altíssimo, como o fizera o justo Jó (cf. Jó 42, 8).

   Fica para nós uma bela lição: se queremos conhecer a medida do amor de Deus pelos homens, interroguemos Aquele que Se deixou crucificar por cada um de nós. Se Ele permite que nos firamos é para cuidar da nossa ferida; mas, sobretudo, Ele oferece as feridas que injustamente os homens Lhe fizeram para dar morte ao pecado e obter a Saúde eterna para cada um de nós.

1 GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano;
PÉREZ RODRÍGUEZ, Gabriel.
Biblia Comentada. Libros sapienciales.
Madrid: BAC, 1962, v.IV, p.50.

 
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