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Catecismo


“Deus nos amou primeiro”
 
AUTOR: IR. RITA DE KÁSSIA C. D. DA SILVA, EP
 
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O coração humano foi feito para amar! Sem embargo, o que é o verdadeiro amor? É mister conhecê-lo, sobretudo numa época como a nossa, na qual ele parece ter perdido seu autêntico sentido.

É madrugada. Ninguém ousa sair de casa, pois ainda parecem ecoar pelas ruas de Jerusalém as batidas de martelo sobre os cravos, os gritos dos insultos e o barulho da multidão agitada com a crucifixão do Nazareno. Entretanto, algumas mulheres vencem o medo e, juntas, decidem ir ao sepulcro… Ao sepulcro? Sim. Ao lugar onde depositaram seu Mestre.

São Francisco de Sales
Se o amor se divide em diversos tipos de
operações amorosas, se torna menos vigoroso
e perfeito do que se concentrasse sua ação em
algo único.

  Loucas! Serão presas! Nada as detém… Movidas pelo amor, enfrentam tudo o que lhes possa ocorrer. Dentre elas destaca-se Maria Madalena. De tal maneira amou o Senhor que se tornou “modelo de amor. Amor vigilante e solícito, que não faz economia e enfrenta qualquer situação; amor que a incita à preocupação pelo que advenha ao Amado; amor que não tem respeito humano, pois enquanto os Apóstolos estão escondidos, ela não mede esforços nem sacrifícios, decidida até a rolar a pedra do sepulcro com as mãos, discutir com os guardas, implorar e provocar um tumulto, se necessário fosse”.1 Enfim, amor que “a torna intrépida: nem o silêncio da noite, nem a solidão do lugar, nem a morada dos mortos, nem a aparição dos espíritos a apavoram; ela apenas teme por não ver o Corpo de seu Mestre para Lhe render as últimas homenagens”.2

  Quão importante é o amor, dado que o coração humano foi feito para amar! Sem embargo, o amor deve estar bem orientado, como o das Santas Mulheres do Evangelho. É conhecida a máxima: “diga-me com quem andas e te direi quem és”. Fazendo uma paráfrase, poderíamos afirmar: diga-me o que amas e te direi quem és…

  Por isso, se faz mister conhecer o que é o verdadeiro amor, sobretudo em uma época como a nossa, na qual esta palavra parece ter perdido seu autêntico sentido, sendo interpretada muitas vezes como mero romantismo ou sentimentalismo passageiro, marcado pelo egoísmo e longe de seu fim último.

Um movimento da vontade livre

  O que vem a ser, então, o amor?

  Ensina São Tomás de Aquino3 que o homem possui faculdades racionais e apetitivas. O apetite racional ou intelectivo consequente à apreensão feita por um juízo livre chama-se vontade. A vontade humana se inclina para o bem que lhe apetece, como seu objeto próprio. Assim, ele define o amor como “o ato primeiro da vontade e do apetite. Por esta razão todos os movimentos apetitivos pressupõem o amor como sua primeira raiz. Ninguém deseja algo se não é o bem amado”.4

  O amor é, pois, ativo, é um ato da vontade humana. E uma vontade reta gera um bom amor; uma vontade degenerada, um mau amor. Por conseguinte, entende-se que, quando se ama retamente, pode-se fazer o que se quiser – “dilige, et quod vis fac”5 –, pois é pelo amor que a vontade deve ser ordenada.

  Santo Agostinho é categórico em afirmar que amar é tão inerente ao ser humano que quem não ama está morto. Porém, alerta: “Amai, mas pensai em que coisa amais”.6 Explica ele ainda que, quando se ama em função de Deus, o amor se chama caridade; “o amor do mundo e o amor deste século se denomina concupiscência”.7

“Tertium non datur”

São Bernardo
“De todos os movimentos, sentimentos
e afetos da alma, o amor é o único pelo
qual a criatura racional pode, de alguma
maneira, pôr-se à altura de seu Criador”.

  Aplica-se para o amor a implacável lei da lógica compreendida no famoso aforismo latino “tertium non datur”. Ou seja, não existe uma terceira posição, não se pode amar de forma contraditória.

  Nesta perspectiva se entende melhor a lapidar proposição agostiniana: “Dois amores geraram duas cidades: a terrena, o amor de si até o desprezo de Deus; a celeste, o amor de Deus até o desprezo de si”.8 O amor é verdadeiro, pois, quando está fundamentado em Deus e deve ser direcionado e ordenado a Deus. E só em função d’Ele deve-se amar os homens e as coisas por Ele criadas.

  A esse respeito, comenta Mons. João Scognamiglio Clá Dias: “existem dois amores: um é o amor verdadeiro, que é o amor por Deus. O outro é o amor egoísta, romântico, sentimental, é o amor por interesse”.9 O primeiro traz satisfação, alegria e paz. O outro proporciona angústia, frustração e lágrimas. Não existe um amor intermediário.

Para onde deve tender nosso coração?

  Sabe-se que todas as coisas tendem a ocupar seu espaço pela lei da gravidade, a qual dá o peso que lhes é próprio. A palavra gravidade deriva do latim gravitas, e é formada a partir do adjetivo gravis, que significa pesado. Também nosso coração, enquanto representando o espírito humano, tem seu peso. E é o mesmo Santo Agostinho quem vai raciocinar a partir deste princípio.

  Diz ele que o peso de cada corpo não só o retém como também dá o lugar de cada coisa. O fogo, por exemplo, ao ser ateado sobe, enquanto uma pedra, se atirada para o alto, cai. E a alma? Como pode ter ela peso, se é espiritual? Ele resolve a questão afirmando que também ela tem um peso que a move e impulsiona: “Pondus meum, amor meus – Meu peso é meu amor; ele me leva a qualquer parte”.10 É o amor que nos move. Nesse sentido, podemos recordar as palavras do Divino Salvador: “onde está o teu tesouro, lá também está teu coração” (Mt 6, 21).

  São Francisco de Sales11 explica que as ações do amor, em nós, podem ser classificadas em espirituais, racionais e sensuais. Contudo, ao espargir sua força pelas três operações ele fica mais extenso e menos intenso. Quer dizer, se o amor se divide em diversos tipos de operações amorosas, se torna menos vigoroso e perfeito do que se concentrasse sua ação em algo único.

  Como símbolo do amor ele utiliza a imagem do fogo e se pergunta: não é verdade que, quando impulsionada a sair pela boca única de um canhão, a chama tem um ímpeto muito maior do que se nele houvesse duas ou três aberturas? Assim, conclui, “uma vez que o amor é um ato de nossa vontade, quem o queira ter não somente nobre e generoso, mas forte, vigoroso e ativo, deve reter a virtude e a força nos limites das operações espirituais; porque quem quiser aplicá-lo às operações da parte sensível ou sensitiva de nossa alma, debilitará um tanto as operações intelectuais, nas quais, precisamente, consiste a essência do amor”.12

  Nosso coração deve tender, portanto, para nosso tesouro, e este deve ser o nosso lado mais elevado. O amor intelectual e cordial, continua São Francisco de Sales, que “deve dominar nossa alma, recusa toda sorte de uniões sensuais e contenta-se com a simples benevolência”.13 E ainda acrescenta: “quanto mais a causa do amor é elevada e espiritual, tanto mais as suas afeições são vivas, subsistentes e permanentes, e não se poderia arruinar mais o amor do que rebaixando-o às uniões vis e terrestres”.14

“Amor com amor se paga”

São Tomás de Aquino
“Todos os movimentos apetitivos
pressupõem o amor como sua primeira
raiz. Ninguém deseja algo se não é o
bem amado”.

  Por este prisma se entende melhor o maior de todos os Mandamentos: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” (Dt 6, 5).

  À primeira vista, poderia ser que este preceito parecesse uma exigência do Criador para que as criaturas O amassem. Todavia, se analisarmos o amor como um ato da vontade em busca do bem, como o fizemos, e observarmos como na vida comum somos inclinados a benquerer aqueles que de alguma maneira nos fazem um bem, qual não deveria ser nosso amor para com Aquele que nos tirou do nada, deu-nos a vida e nos mantém no ser? Mais! Ele vela por cada um, seja um insignificante inseto, sejam os gigantescos animais ou monstros marinhos, “nem um só deles passa despercebido diante de Deus” (Lc 12, 6). Se tal é o cuidado de Deus pelos animais, qual não será o desvelo pela criatura que Ele designou para ser rei do universo, fazendo-a à sua “imagem e semelhança” (Gn 1, 26)? “Até os cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Não temais” (Mt 10, 30-31), anima o Divino Mestre.

  Para além de uma exigência, o Mandamento gravado nas Tábuas da Lei é uma necessidade de retribuição e restituição. “Amor com amor se paga”, reza o provérbio. Não obstante, como pode o homem corresponder a tal amor de predileção?

  Assegura São Bernardo que “o amor é algo grande, se brota de seu verdadeiro manancial, se sobe à sua origem e sua fonte, e tira dali sempre novas águas para correr sem cessar. De todos os movimentos, sentimentos e afetos da alma, o amor é o único pelo qual a criatura racional pode, de alguma maneira, pôr-se à altura de seu Criador e pagar-Lhe com a mesma moeda”.15

Na caridade encontramos a plena felicidade

  Com efeito, o Altíssimo nos escolheu, entre as infinitas criaturas que poderia ter criado e não criou, por amor: “amais tudo o que existe, e não odiais nada do que fizestes, porquanto, se o odiásseis, não o teríeis feito de modo algum” (Sb 11, 24). Deus não ama as coisas por serem boas; antes, ao amá-las, infunde-lhes o bem. Por isso, das criaturas racionais – que foram aquinhoadas com o que de mais elevado se poderia ter, isto é, um espírito imortal e o convite para a visão beatífica – Deus espera ser ­retribuído com amor. Não é outra a finalidade para a qual foram criadas: amar e servir a Deus neste mundo e depois gozar de seu convívio na eternidade.

  Só quem tem o peso de seu coração inclinado para as coisas do alto é capaz de ver nos outros seres humanos este reflexo divino de criaturas saídas das mãos de Deus. Isto não é senão a genuína caridade, pela qual as pessoas se tornam benévolas umas com as outras, por amor a Deus. E o autêntico amor ao próximo é um testemunho de que se ama realmente a Deus, como assevera o Discípulo Amado, “porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê” (I Jo 4, 20).

Santo Agostinho
“Dois amores geraram duas cidades:
a terrena, o amor de si até o desprezo
de Deus; a celeste, o amor de Deus até
o desprezo de si”.

  Podemos, assim, sintetizar o verdadeiro amor nas inspiradas palavras de Mons. João Scognamiglio Clá Dias: “‘Amamos, porque Deus nos amou primeiro’ (I Jo 4, 19). Sim, nossa caridade não é mais do que uma restituição pelos favores sem conta que de sua bondade recebemos. Como Criador, Ele nos deu o ser, nos mantém e nos manterá para sempre; como Redentor, nos salvou, encarnando-Se e sofrendo os tormentos da Paixão; como Pai, quis introduzir em nós a vida divina, ‘para que sejamos chamados filhos de Deus’ (I Jo 3, 1). Ele é nossa bem-aventurança! O Bem por excelência, o Bem substancial, o Bem em essência é Deus. É, portanto, na adesão total a Ele, pela prática deste Mandamento – e não nos gostos terrenos e fragmentários – que encontramos a plena felicidade”.16 (Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro/2017, n. 182, p. 36-39)

1 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O prêmio concedido aos que mais amam. In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2013, v.VII, p.360.
2 DUQUESNE. L’Évangile médité. Paris: Victor Lecoffre, 1904, v.IV, p.386.
3 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.26, a.1.
4 Idem, I, q.20, a.1.
5 SANTO AGOSTINHO. In Epistolam Ioannis ad Parthos tractatus decem. Tractatus VII, n.8. In: Obras. Madrid: BAC, 1959, v.XVIII, p.304.
6 SANTO AGOSTINHO. Enarratio in Psalmum XXXI. Sermo II, n.5. In: Obras. Madrid: BAC, 1964, v.XIX, p.391.
7 Idem, ibidem.
8 SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XIV, c.28. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.985.
9 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Homilia da Sexta-feira antes da Epifania. Caieiras, 5 jan. 2006.
10 SANTO AGOSTINHO. Confessionum. L.XIII, c.9, n.10. In: Obras. 7.ed. Madrid: BAC, 1979, v.II, p.561.
11 Cf. SÃO FRANCISCO DE SALES. Traité de l’amour de Dieu. L.I, c.10. Paris: Lecoffre; J. Gabalda, 1934, t.I, p.38.
12 Idem, p.38-39.
13 Idem, p.41.
14 Idem, p.43.
15 SÃO BERNARDO. Comentarios sobre el Cantar de los Cantares. Sermón LXXXIII, n.4. In: Obras Completas. Barcelona: Rafael Casulleras, 1925, v.III, p.708.
16 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. As duas asas da santidade. In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2014, v.IV, p.470-471.

 
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