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Plinio Corrêa de Oliveira


O gosto do corre-corre
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 04/02/2019
 
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Descrevendo com muita verve os detalhes de locomoções feitas de automóvel, de trem e de bonde, Dr. Plinio analisa com profundidade as modificações de estados de espírito provocadas pela Revolução Industrial. Muito mais que uma obra de literatura, é uma explicitação a qual deve figurar nos Tratados de vida espiritual.

Percebo ter uma certa graça para o discernimento dos espíritos, mas isso nasceu tão cedo em mim e tão conjugado com a minha natureza, que foi só muito tempo depois, quando eu tinha mais ou menos cinquenta ou sessenta anos, que me chegou ao espírito a ideia de que esse fenômeno era discernimento dos espíritos.

Como Dr. Plinio deu-se conta de que possuía discernimento dos espíritos

Talvez tenha concorrido para isso o meu empenho em não me comparar com ninguém. Então, está se dando comigo, logo ocorre com todo mundo, todas as pessoas são assim. Mas depois, fazendo um retrospecto.

Como cheguei a dar-me conta de que isso era discernimento dos espíritos? Foi por uma operação, onde a coisa saltava com uma evidência de arrebentar e que era o seguinte: se todo mundo visse como eu vejo, as pessoas agiriam em muitas ocasiões com muito mais habilidade do que de fato costumam agir. Isso é uma prova de que não veem a situação como está. E também entenderiam muito melhor o que eu digo e se compenetrariam muito mais. Mais uma prova de que não veem a situação como eu vejo.

Por outro lado, em nada do que li em Psicologia, etc., encontrei algum traço, vestígio de que as pessoas têm facilidade de ver a mente dos outros como eu vejo. Dada a relação disso com a minha vocação, como a serve e sendo até indispensável para que ela se realize, em consequência é realmente imprescindível o discernimento dos espíritos. Vamos aos livros de Teologia para ver o que dizem sobre esse tema, e conferem com o que eu percebo em mim; logo, é mesmo discernimento dos espíritos. Foi por este processo que cheguei a me persuadir disso.

Como apareceu no meu espírito o discernimento, todo gotejante de dúvidas, a respeito da opinião pública? A expressão “Revolução Industrial” eu conheci na década de 1930, porque nunca notei a pronunciarem diante de mim antes disso, ou se pronunciaram não fixei a atenção. Li um artigo escrito por uma pessoa que tinha sido acusada de não gostar da Revolução Industrial e que, para se livrar dessa pecha, dizia-se fanática dessa Revolução e dava as razões de seu fanatismo.

Foi nessa ocasião que cogitei: “Revolução Industrial: que expressão bem pensada, não vou mais me esquecer dela.” Mas, antes disso, eu já entendia o que era. Eu não sabia dar nomes aos bois, mas já sabia qual era o boi daquele nome.

Deleites da alma

Tratava-se de um conjunto de estados de espírito que se definiria assim: eu notava que havia pessoas na minha família as quais não estavam impregnadas pela Revolução Industrial. Não que possuíssem uma oposição de doutrina a essa Revolução, mas tinham um alheamento, porque quase toda a vida delas passou- -se numa São Paulinho ainda muito antiga, na qual a Revolução Industrial não tinha começado a fazer seus estragos. Era toda a geração de minha avó. Ela tinha irmãos, irmãs, que iam bastante em casa. Dois de seus irmãos eram solteirões, ateus, republicanos, etc., e eu notava que estavam ultraencharcados de ideias revolucionárias.

Mas eu observava, por exemplo, que o modo deles andarem na rua era de tranquilidade, a qual eles degustavam, mas ia acompanhada de um certo gosto de sentir os bem-estares, os lazeres da própria alma, e isso constituía um fator de contentamento. Não é uma coisa sentimental. É o gosto de um sosseguinho, de uma certa despreocupação, de um certo laisser faire, laisser passer1 , do aconchego da vida comum, de permanecer dentro da natureza. A alma deles estava dentro da São Paulinho – usando uma expressão um pouco prosaica – não como um indivíduo veste uma roupa de gala, mas como quem “usa pijama”. Quando o corpo de um indivíduo está num pijama, ele sente os mil confortinhos que a roupa corrente não dá, e o traje de gala proporciona menos ainda. É natural.

Por exemplo, chega um, pergunta como vão passando; todos param a conversa, então indagam por ele também, e se há alguma novidade. Quando conta uma notícia que interessa muito a todos, comentam: “Ah, que importante!”, etc. Depois voltam para o mesmo estilo anterior. Em certo momento, quando chega a hora de todo mundo dormir, a prosa se desfaz com muita tranquilidade: “Até amanhã, até amanhã, até amanhã!”

Esses lazeres, essas demoras, esse sentir as comodidades e os deleites da existência – este é o ponto importante – são principalmente alma; inclusive pessoas as quais conheci, que negavam a existência da alma, viviam das delícias da alma.

Dois irmãos muito diferentes

Lembro-me, por exemplo, de dois irmãos os quais tinham vidas muito diferentes. Um deles era um bem bonito homem. E às vezes – é uma coisa esquisita na vida, mas acontece –, quando há dois irmãos e um é bem construído fisicamente, bonitão, saudável, etc., todas as felicidades correm para a mão dele. E o outro é um tanto raro, fisicamente meio torto, também todas as desventuras caminham em direção a ele. Acho que um dos sentidos da expressão “atrás dos apedrejados correm as pedras” é esse. Eles eram pobres, porque seu ancestral morreu sendo eles muito pequenos, e deixou-os sem recursos.

O primeiro, como eu estava dizendo, bonitão e muito agradável de trato. Não era um homem brilhante, mas luzidio, muito garboso. Certo dia − ele era engenheirozinho da Secretaria de Agricultura e Obras Públicas –, veio da Light um recado: perguntavam-lhe se tinha interesse em vender as terras pertencentes a ele no alto da Serra da Cantareira, pois aquela empresa ia fazer obras lá. E ele, que era um pouco rabugento, disse que não tinha terras nesse local.

Depois, examinando as escrituras, verificou que por sucessão tinham ficado aquelas terras para ele. O homem pulou como uma hiena, foi para a Light e constatou que seu bisavô tinha comprado uma infinidade de terras naquele local, com um fim especulativo. Então, ele vendeu por uma fortuna as terras e ficou rico. Creio que dias depois pediu demissão da Secretaria de Agricultura; em seguida foi para a Europa. E morreu no Brasil entre os oitenta e noventa anos, numa vida só de prazer.

Seu irmão, pelo contrário, levou uma vida dura. Montou uma loja de ferragens no antigo Centro de São Paulo. Era um positivista, alto, feio, com um narigão de bico de águia malograda – que foi atingida por defluxo –, olhinhos pequenos, bem mais inteligente que o primeiro, mas por causa disso cheio de ideias originais que não davam certo, meio abstruso, extravagante. Em certo momento ficou louco, com mania de perseguição.

Depois ele caiu na miséria, mas enfim a cabeça ficou mais ou menos. Então, os outros irmãos que eram ricos se cotizavam e davam-lhe uma mesada, para levar uma vidoca sossegada, agradável, e paga com aquela pontualidade de antigamente. O primeiro morava no Esplanada, um dos grandes hotéis de São Paulo. O segundo residia numa casinhola, numa dessas vilas que têm uma espécie de pente, uma rua só de entrada e com várias casas. Embriaguez da pressa Em toda essa geração havia o prazer da alma primando o do corpo, e consistindo sobretudo na folga, no ter tempo, no trabalhar pouco ou não trabalhar nada, na despreocupação e no conversar.

Esses dois eram capazes até de falar, caminhando no Jardim da Luz, sobre o fato de que os miosótis existentes em sua casa estavam morrendo, e seria melhor arranjar uma outra modalidade dessa flor, que tinha em tal lugar; e combinariam para ir no dia seguinte àquele local, para ver se conseguiriam adquiri-la. Assim era a vida.

Naquele tempo, embora a Revolução Industrial já tivesse ido longe, alcançara pouco a vida da São Paulinho, quer dizer, o viver quotidiano do paulista, seu estado de espírito muito pouco atingidos. Mamãe era assim.

Parque da Luz, em 1902 – São Paulo, Brasil

Eu via o jeito das pessoas acenderem os botões elétricos dentro da casa: uma certa volúpia. Viam a luz, contentamento! E a vida inteira com uma sofreguidão de fazer as coisas acontecerem com rapidez, que indicava uma espécie de embriaguez da pressa e da eficácia, no sentido de desencadear dentro de pouco tempo muitas ações e sensações ao mesmo tempo, todas no oposto daquela impressão dos dois que contei há pouco. Não era sentir a própria alma, mas o mundo exterior enquanto influenciando, mexendo com a alma, ter as sensações rápidas, em passo veloz, etc., uma sucessão de impressões em que a alma não se sente a si mesma, e de dentro de si mesma observa o mundo exterior, mas experimenta o mundo exterior invadi- -la antes que ela tenha tido tempo de tomar consciência de si mesma.

O principal objeto do bem-estar de um homem da era pré-industrial, ou ao menos da era industrial tão incipiente que não tinha tocado a vida dele, consistia em sentir-se degustando o viver. Para os outros não: era sentir o viver impondo de fora para dentro sensações, as mesmas em todo mundo. Portanto, muito menos individuadas, marcadas pelo temperamento de cada um, saboreadas, mas uma coisa que meio embriaga e dá ao indivíduo o gosto dessa embriaguez.

Movimentação na Estação da Luz

Por exemplo, a Estação da Luz, como quase todas as estações ferroviárias, tem dois planos: uma plataforma com um cais onde as pessoas embarcam ou desembarcam dos trens; e outra num nível mais alto, que é o da rua, na qual há um hall grande, bilheterias, restaurantes.

Chegava-se à estação pouco antes do trem partir. E havia certo inebriamento em chegar pouco tempo antes, fazendo que o automóvel corresse bastante. Então, diziam para o chauffeur: “Toca, toca, toca”. Nas ruas quase desertas da São Paulinho, aqueles automóveis com umas buzinas de borracha ligadas a uma espécie de corneta; apertava-se a buzina de borracha: fuóóónnn. Dava a impressão de que o automóvel assoava o nariz naquela hora. Depois a borracha ia se enchendo de novo, e o veículo correndo, os para-lamas muito grandões, mal fixados no corpo do automóvel, fazendo barulho. As ruas não eram asfaltadas, mas com calçamento que provocava muitos solavancos, e solavancos de ferro. Cada vez que o automóvel mudava de velocidade, eu tenho a impressão de que precisava abrir o escapamento e sair barulho; e a família dentro apressada porque podia perder o trem. Mas isto era um atrativo da viagem.

O chefe da família – se era um homem digno de ser homem –, ao chegar na estação, quando o automóvel mal encostava na calçada, de dentro para fora já estava abrindo a porta e os carregadores vinham pegar as malas, mas ele precisava não ser bobo e tomar nota do número do carregador, porque senão este podia sumir com as malas todas. Às vezes, dois, três carregadores, porque para fazer uma viagem curtinha era uma mudança, devido à quantidade de objetos que levavam.

Os criados ali prontos para atender uma ordem que o dono ou a dona da casa dessem na hora de partir, e a criançada toda que descia do automóvel.

Avenida Tiradentes, tendo ao fundo a Estação da Luz, em 1900 – São Paulo, Brasil

Alguns minutos antes do trem partir, começava a tocar uma campainha de metal branco e com uma linguinha do lado de fora e uma bola na ponta, que era acionada pelo chefe da estação para dar ideia de que todos precisavam descer logo porque o trem ia partir.

Então, era naquela atmosfera que o dono da casa comprava os bilhetes, e havia sempre um probleminha de troco, o que tornava mais angustiante a história. Afinal, todos desciam a escada correndo, entravam no vagão. E, antes mesmo de dar o sinal de partida, a máquina se movia com um golpe para trás em todos os vagões, mas com uma certa brutalidade, e inopinado.

Gosto da calma

Depois, a chaminé com o silvo que rasgava o silêncio da cidade: fuuuu, fuuuu, fuuuu, a fumaça começava a exalar e o trem saía da estação. Adeuses… – iam se ver dali três ou quatro dias; gente da família ia acompanhar os viajantes à estação, às vezes –: “Olha, não deixe de me escrever, hein!” Essas coisas à última hora, as senhoras lançavam beijinhos, etc. Afinal de contas, o trem estava tão longe que todos se sentavam: Ahhh! Mas então já se encontrava mais ou menos no campo, e outras imagens se sucediam.

Por que tomei o trabalho de descrever todas essas banalidades? Para mostrar as impressões que se superpõem e o gosto do corre-corre. Mas todo aquele mundo introspectivo do tempo dos meus avós ia desaparecendo. E surgia um horror à introspecção, ao isolamento, às sensações proporcionadas à vibratilidade do homem e que não a quebravam nem a cansavam; e um gosto pelo contrário.

O trem ia tocando. Em certo momento, uma voz de criança: “Mamãe, eu estou enjoado.” Era eu falando com Dona Lucilia, porque não sabia proceder bem no trem: em vez de olhar o que vinha, voltado para o futuro, olhava reto para o presente. E aí começava a me enjoar.

Mamãe dizia: “Chupe uma bala.” Era um conselho que sempre encontrava ouvidos gratos em mim: comer alguma coisa. Então, chupava uma bala, já comprada em casa para o caso de eu me enjoar. Afinal, depois me acomodava também e continuava a viagem.

Eu pensava: “Quando acaba esta porcaria de viagem!?” E o pessoal todo contente…

Não há nada contra a pureza aí, mas é uma outra questão. É o gosto do temperado, da moderação, da calma, de sentir-se mais alma do que corpo, de espichar-se, de esticar-se, de estar só; nada disso os da geração nova tinham.

O bonde e o cinema

Uma coisa característica disso é a seguinte: o bonde morreu debaixo da execração geral. Ele foi um ídolo. E no meu tempo de pequeno, mesmo pessoas ricas e até muito ricas, que podiam andar de automóvel, tomavam bonde. Este tinha seu fascínio próprio; era aberto, quando uma pessoa entrava via todo mundo, cumprimentos para esse, para aquele, sentava-se às vezes ao lado de um conhecido, ia conversando. Havia solavancos quando os trilhos se encontravam uns nos outros e depois, nas grandes avenidas, o bonde tocava muito rápido. Às vezes tinha uma história que nem sei descrever muito bem, mas em certos momentos o condutor do bonde parava, descia e, com uma espécie de chave elétrica, abria uma caixa que estava ligada a um poste, dava um sinal qualquer e acendia ou apagava uma luz dentro daquela caixa. Era para dar a um outro bonde o sinal de que ele ia entrar, pois naquele percurso havia uma linha só. Então, o outro bonde tinha que ficar esperando, porque os dois veículos não podiam se encontrar juntos nos mesmos trilhos. E os passageiros ficavam esperando que o outro bonde chegasse, para deixar os trilhos livres.

Durante esse tempo, pequenas impaciências indiscretas, que indicavam a pressa e o gosto do corre- -corre do homem, e que ele estava aggiornato. Às vezes, uma senhora também dizia meio alto: “Ih fulano! Como está cacete isso, não é?” Para todo mundo ver que era uma senhora moderna e estava na onda.

Ora, tudo isso era o contrário do meu modo de ser.

O cinema apresentava aspectos assim da vida norte-americana, mas muito mais agudos e de um modo inebriante.

Anos mais tarde, aparece no cinema o Empire States, aquelas pontes norte-americanas. Então, sempre havia alguém que dizia: “Imagine, hein! Isto se sobe em três minutos!” Subir oitenta andares… inebriante!

Eu pensava: “Puxa! Sobe em três? Se eu encontrasse um elevador que levasse dez minutos, era capaz de preferir, desde que houvesse um banquinho dentro dele”, como havia em muitos elevadores. E ainda na Europa eu alcancei isto: banquinhos para os passageiros subirem sentados.

Um fantasma ou um demônio tragando as almas

Então, laicismo completo, otimismo constante, todo o ambiente da civilização industrial é continuamente otimista, porque a Ciência vai resolver tudo, curar todas as doenças. Portanto é preciso estar sempre alegre, rindo, sorrindo. E igualitarismo total que nem dá tempo de ficar prestando atenção nas distinções sociais, nem fazer mesuras.

No total, um despojamento de tudo o que fazia a vida da Idade Média. Ideia, portanto, de heroísmo individual, nunca! Só heroísmo coletivo. Sentir coisas individuais, não. Apenas coisas coletivas. O progresso é eminentemente coletivista, porque foi feito para as massas, a fim de se sentirem felizes, gostarem, adorarem, etc. E o indivíduo sente um gosto estranho em ser massa, estar na massa e viver na consonância da massa.

E assim como descrevi no começo da exposição aquele estado de espírito, que se evolava das pessoas à maneira de um fantasma extrínseco e a influenciava, o espírito laico, coletivista, otimista, e com outras características do gênero da Revolução Industrial, se destacava como um fantasma, ou um demônio, tragando as almas de todos que entravam naquilo, e dirigindo o curso dos acontecimentos. E não havia resistência.

Por exemplo, mexer com instrumentos mecânicos era considerado, pelas pessoas da geração dos meus avós, como muito complicado. Um reflexo que minha avó, entretanto uma senhora inteligente, nunca conseguiu romper era este: ela falava pouco ao telefone, e quando o fazia punha o pince-nez2 . Todas as pessoas brincavam com ela: “Mas o que é isso?”, brincavam com respeito. Ela dizia: “Não me amolem.” Mas na hora em que a chamavam de novo ao telefone, ela pegava o pince-nez e o colocava. Vemos que é como quem se muniu de um recurso a fim de fazer algo para o qual ela não se adapta.

As gerações que vieram posteriormente já nasceram, num certo sentido da palavra, com lente de contato. Então, também não fica nada difícil se compreender a ascensão das neuroses, das psicoses; depois, das manias coletivas. (Extraído de conferência de 27/8/1986) – (Revista Dr. Plinio, março/2017, n. 228, pp. 19 a 23)

1) Do francês: deixar fazer, deixar passar.
2) Óculos leves que se mantinham sobre o nariz pela pressão de uma mola.

 
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