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São Charbel Makhlouf: Paz, silêncio e solidão
 
AUTOR: IR. RAPHAELA NOGUEIRA THOMAZ
 
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No Líbano, cujos majestosos cedros e míticas montanhas foram tantas vezes louvados pela Sagrada Escritura, brilhou, em pleno século XIX, um dos maiores anacoretas da história da Igreja.

Desde os primórdios do Cristianismo, reluziram no firmamento da Igreja homens e mulheres orantes que passavam a vida na contemplação e no silêncio, absortos somente em Deus. Despojados por completo das preocupações terrenas, tinham a alma fixada num único fim: vacare Deo – descansar em Deus, dar-se a Deus.

   Retrocedamos quase dois séculos e viajemos, em busca de uma dessas almas, a um país de escarpados montes cujas maravilhas foram inúmeras vezes proclamadas nos Livros Sagrados: o Líbano. Foi ali onde, em 1828, na aldeia de Beqaa Kafra, nascera à sombra dos cedroscentenários o pequeno Youssef Makhlouf.

Deus começa a lhe falar ao coração

   Já nos tenros anos de sua infância, morreu seu pai, Antun Za’rur Makhlouf, submetido pelo exército otomano a um regime de trabalhos forçados. Sua mãe, Brígida, contraíra novas núpcias, deixando a casa e as pequenas propriedades de Antun para os filhos, que passaram a ser tutelados pelo tio paterno, Tannus.

   Inclinado à piedade e à devoção, coube ao pequeno Youssef, sendo embora o caçula de cinco irmãos, dar-lhes bom exemplo na piedade e no cumprimento dos deveres. Dotado de um espírito piedoso e altamente submisso, recitava diariamente as orações com a família, bem como desempenhava com grande esmero a tarefa de vigiar os animais no pasto.

   Suas virtudes logo se tornaram manifestas a todos os habitantes da aldeia. Gostava da solidão, era prudente e inteligente. Na igreja, mantinha-se recolhido, sem sequer olhar ao redor de si. De tal forma seu bom comportamento chamava a atenção, que os rapazes da região a ele se referiam como “o Santo”.

   A Providência foi preparando aos poucos a alma desse seu filho eleito até o ponto de que, vivendo ainda no mundo, dele se utilizava apenas para cumprir o que era a única aspiração de sua vida. “Quando Deus quer se unir intimamente a um homem e lhe falar ao coração, Ele o conduz à solidão. Se se trata de um homem chamado à vida religiosa contemplativa, Deus, para realizar o seu desejo, começa por separá-lo do mundo”.

   Foi assim que, no ano de 1851, aos 23 anos de idade, Youssef deixou o lar materno e ingressou no Mosteiro de Nossa Senhora, em Maïfuq, onde adotou o nome de Charbel, em louvor ao mártir de Edessa, do segundo século.

De Maifouk a São Maron de Annaya

   Porém, com esse desejo de isolar-se do mundo ardendo-lhe na alma, Maifouk certamente não era o ambiente mais propício para a realização de seu ideal. Embora ali levasse uma vida de oração e trabalho, como a santa Regra pedia, o contato com os camponês vizinhos prejudicava-lhe muito o recolhimento.

   Certo dia em que os noviços se ocupavam de sua tarefa diária de tirar as folhas e cascas das amoreiras, para a criação do bicho-da-seda, uma mocinha que trabalhava ao lado, querendo pôr à prova o silêncio e a seriedade de Charbel, lançou-lhe ao rosto um casulo. Não obtendo resultado, lançou outro. O jovem noviço permaneceu impassível, mas naquela mesma noite saiu do mosteiro de Maifouk, sem dizer nada a ninguém, e foi recolher-se ao convento de São Maron de Annaya, situado a quatro horas de marcha.

   Ali reiniciou o noviciado, separado do mundo por uma severa clausura, observando a regra que o guiava nas vias da contemplação, do recolhimento, da oração e da obediência. Dois anos depois recebeu o hábito dos maronitas – túnica preta, capuz em forma de cone e cordão feito de pele de cabra – e pronunciou os votos de pobreza, castidade e obediência. Desde então, foi um monge submergido no anonimato e nos seus colóquios com Deus.

   Embora tudo fizesse para lançar sua pessoa ao olvido, sua santidade tornou-se notória para os outros religiosos. Por decisão do superior e do conselho da comunidade, foi admitido às ordens sacras e, após fazer os necessários estudos, recebeu a ordenação presbiteral em 1859.

   Charbel celebrava o Santo Sacrifício com a máxima dignidade e com uma fé tão viva, que, com frequência, durante a Consagração, as lágrimas corriam-lhe dos olhos escuros e profundos, os quais eram como duas janelas abertas para o Céu. E, na contemplação, ficava de tal modo absorto que não prestava atenção alguma a eventuais ruídos ou rumores.

Modelo de obediência e pureza

   Desde o tempo de noviciado até seu último alento, destacou-se como monge exemplar na obediência e na observância da Regra. Ao ponto de que, quando o Superior ordenava a um monge fazer algo muito penoso, era frequente ouvir uma resposta do tipo:

   – Pensa o senhor, por acaso, que sou o padre Charbel?

   Certa ocasião, sendo ele ainda noviço, um sacerdote resolveu pôr à prova sua paciência. Na hora de transportar de um campo para outro os instrumentos agrícolas, começou a amontoar sobre seus ombros sacos de sementes, peças de arados, ferramentas e outros materiais… Quando terminou, via-se no meio da carga o rosto sorridente de Charbel que repetia a censura de Jesus aos doutores da Lei:”Ai de vós, que carregais os homens com pesos que não podem levar…” (Lc 11, 46). Todos riram desse dito espirituoso e apressaram-se em livrá-lo do excesso de carga.

   Brilhou também de modo especial na luta para preservar a virtude da castidade, com atos de heroísmo extremos, sem jamais demonstrar aos outros as mortificações que fazia. A Regra da Ordem incita os monges a refrear com todo empenho os próprios sentidos. Entre outras atitudes de vigilância, exorta-os a evitar qualquer conversa com pessoas do sexo feminino, mesmo tratando-se de parentes. São Charbel foi mais longe: ele fez, e cumpriu, o propósito de jamais olhar para o rosto de uma mulher.

O dom de fazer milagres

   Teve o dom de fazer milagres, e o exerceu com sua costumeira humildade.

   Certa vez, uma pobre mulher hemorroíssa, cuja enfermidade resistia a todos os tratamentos, encarregou um mensageiro de entregar ao padre Charbel determinada quantia e pedirlhe que este lhe enviasse uma correia benta. Há uma devoção mariana típica do Líbano: nas situações de emergência – calamidades públicas, epidemias, guerras, etc. -, os chefes de família levam à igreja um véu de seda ou algodão; esses véus são entrelaçados e ficam suspensos em volta da capela, até a Virgem fazer cessar a desgraça. O padre Charbel pegou, então, um desses véus, que estava na imagem de Nossa Senhora do Rosário, e o entregou ao mensageiro, dizendo:

   – Que a mulher se cinja com este véu, e ficará curada. Quanto à esmola, coloque-a sobre o altar, o padre provedor irá tirá-la. – E a mulher ficou curada.

Na ermida de São Pedro e São Paulo

   Visto que a solidão o atraía desde a infância, e que no mosteiro de Annaya vivia já praticamente como um anacoreta, foi ele transferido para a ermida de São Pedro e São Paulo, a pouca distância do mosteiro. Tinha então 47 anos, e ali permaneceu até o dia de sua morte, ocorrida 23 anos depois.

   Sua oração era apenas interrompida pelo cultivo da vinha e outros trabalhos na ermida. E a única refeição do dia, perto das três horas da tarde, acabava sendo um exercício de penitência, pela exiguidade e pobreza do alimento. Sua devoção a Maria era incomparável. Repetia continuamente Seu nome bendito, e cada vez que entrava ou saía de sua cela recitava, de joelhos, a saudação angélica diante de uma pequena imagem que ali ficava.

   Proverbial era também sua paz de alma. Num dia de tempestade, um raio derrubou parte da ala meridional da ermida, deitou por terra uma parede da vinha e queimou, na capela, as toalhas do altar, enquanto o santo monge ali se encontrava, em oração. Dois ermitães acorreram ao local, e o viram na mais apaziguante tranquilidade.

   – Padre Charbel, por que não se moveu para apagar o fogo?

   – Caro irmão, como poderia fazê-lo? Pois logo depois de atear-se, o fogo se extinguiu…

   De fato, como o incêndio fora rapidíssimo, ele julgara mais importante continuar sua oração, sem se perturbar.

Nascimento para a vida eterna

   Quando celebrava a Missa no dia 16 de dezembro de 1898, no momento em que comungava o Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, um repentino ataque de apoplexia o deixou paralisado, sem poder concluir o Santo Sacrifício. Socorrido sem demora, foi levado para sua pobre cela, onde permaneceu oito dias entre a vida e a morte, com intervalos de lucidez durante os quais rezava curtas orações.

   Na vigília do Natal, enquanto a Igreja comemorava a vinda ao mundo do Menino Jesus, nasceu para a eternidade aquele santo monge maronita, o primeiro oriental a ser canonizado segundo a forma usada na Igreja Católica latina.

   Seus restos mortais foram sepultados em uma vala comum, junto aos dos demais monges falecidos, como pedia a santa Regra. E, desde aquele momento, o cemitério passou a ser iluminado à noite por uma suave e misteriosa luz. Este e outros prodígios, unidos à sua fama de santidade, levaram a transferi-los para um novo túmulo, na parede da cripta da Igreja de São Maron.

   A vala onde São Charbel fora enterrado era tão úmida que, ao fazer a exumação, o corpo apareceu literalmente encharcado, mas milagrosamente íntegro e flexível, transpirando um líquido avermelhado de agradável odor. E quando o novo túmulo fora aberto, em 1950, 1952 e 1955, constatou-se que ainda continuava flexível e incorrupto.

   Sua modelar vida monástica e os numerosos milagres realizados pela sua intercessão levaram o Papa Paulo VI a beatificá-lo em 5 de dezembro de 1965, dias antes da clausura do Concílio Vaticano II, e a canonizálo em 10 de outubro de 1977.

Exemplo também para nós

   O exemplo de São Charbel Makhlouf indica um caminho também nos dias de hoje, pois o silêncio e a oração constituem um valioso auxílio para solucionar as angústias e aflições do homem contemporâneo.

   Engana-se quem pensa que o recolhimento é privilégio exclusivo dos religiosos de clausura. Ele está ao alcance de todos nós, pois “a fonte da verdadeira solidão e do silêncio não está nas condições ou na qualidade do trabalho, mas sim no contato íntimo com Deus […] O silêncio, assim entendido, pode encontrar-se na rua, no estrépito do trabalho da fábrica, nas atividades do campo, porque é levado dentro de nós”.2 (Revista Arautos do Evangelho, Julho/2009, n. 91, p. 34 à 36)

 
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