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Voz dos Papas


A vida interior do ministro ordenado
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 16/02/2017
 
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Pode ser necessário que o pastor se ocupe dos afazeres temporais, mas nunca deve procurá-los com paixão, pelo receio de que eles precipitem sua alma das alturas celestes aos fundos abismos.
São Gregório Magno, por Francisco
de Osona – Museu da Catedral de
Segorbe (Espanha)

Não deve o pastor deixar-se absorver pelas ocupações exteriores a ponto de reduzir sua solicitude pela vida interior, nem deve permitir que esta solicitude o conduza a negligenciar as obrigações exteriores. Os afazeres temporais não podem levá-lo a descuidar da vida espiritual, nem a dedicação exclusiva a esta prejudicar os deveres para com o próximo.

Se a cabeça estiver doente, inútil será o vigor dos membros

Entretanto, acontece com frequência que certos pastores, parecendo esquecer que receberam sua alta missão para o bem das almas, dedicam-se por inteiro às ocupações temporais. Quando estas se apresentam, exultam em poder ocupar-se delas; quando faltam, suspiram dia e noite por elas, na agitação de seu tumultuoso ardor. E quando ocasionalmente ficam inativos e podem descansar, esses momentos de repouso os cansam ainda mais. Sentem alegria por estarem sobrecarregados de trabalhos e consideram um suplício o fato de não serem absorvidos pelos empreendimentos temporais.
Sucede assim que, pondo sua alegria em serem esmagados pelas inquietações mundanas, ignoram os bens interiores que deviam ensinar aos outros. Donde resulta forçosamente a languidez da vida espiritual dos seus fiéis, porque, mesmo se estes manifestarem desejos de progredir, tropeçarão no exemplo de seu pastor, como num obstáculo na estrada.
De fato, se a cabeça estiver doente, inútil será o vigor dos membros; em vão um exército perseguirá denodadamente o inimigo se, por culpa de seu comandante, seguir uma pista falsa. Nenhuma exortação será capaz de elevar as almas, nenhuma severa admoestação reprimirá seus erros, porque enquanto o guia das almas exercer encargos de juiz secular, não se preocupará com a guarda do rebanho a ele confiado. Seus fiéis ficarão privados da luz da verdade, pois, se as atividades terrenas ocupam o espírito do pastor, a poeira levantada pelo vento da tentação cegará os olhos de sua igreja.

Compete aos fiéis a gestão das coisas menos elevadas

O Redentor do gênero humano alerta-nos contra a voracidade do ventre dizendo: “Velai sobre vós mesmos, para que os vossos corações não se tornem pesados com o excesso do comer, com a embriaguez”. E logo a seguir acrescenta: “e com as preocupações da vida” (Lc 21, 34a).
A advertência conclui com uma ameaça – “para que aquele dia não vos apanhe de improviso” (Lc 21, 34b) – cuja repentina chegada é anunciada em seguida: “como um laço cairá sobre aqueles que habitam a face de toda a Terra” (Lc 21, 35). E em outro lugar Cristo admoesta: “Ninguém pode servir a dois senhores” (Lc 16, 13).
Por esse motivo Paulo procura afastar as mentes dos religiosos do contato com o mundo mais com ameaças do que com súplicas, afirmando que “nenhum soldado pode implicar-se em negócios da vida civil, se quer agradar ao que o alistou” (II Tim 2, 4). Prescreve, portanto, aos pastores que deixem de lado quaisquer interesses espúrios, e lhes indica como devem se comportar nessa matéria: “Quando tendes contendas desse gênero, escolheis para juízes ­pessoas cuja opinião é tida em nada pela Igreja” (I Cor 6, 4). Isto é, devem se reservar as tarefas temporais para aqueles menos ricos em bens espirituais. Ou, por outras palavras, aqueles que não são capazes de penetrar os segredos da alma, cuidem dos assuntos exteriores indispensáveis.
Moisés, homem que falava com Deus, é severamente reprendido por Jetro, um estrangeiro, por gastar inutilmente suas forças cuidando dos interesses temporais do povo. Este o aconselha a escolher algumas pessoas que dirimissem os litígios em seu nome, a fim de ele se dedicar com maior liberdade a meditar nos segredos do mundo espiritual e poder assim instruir o povo neles.
Compete, portanto, aos fiéis a gestão das coisas inferiores, e aos pastores o cuidado das mais elevadas, para que os olhos, destinados a discernir o caminho, não sejam ofuscados pela poeira do solo.
Os que presidem são como a cabeça de seus súditos, e para que os pés estejam em condições de seguir o caminho certo é preciso que ele seja bem examinado pela cabeça desde a altura em que está colocada. Pois se a cabeça se inclinar para a terra, obrigando o corpo a arquear-se, os pés ficarão impedidos de avançar com regularidade a cada passo.

O ouro se avilta pela prática de atividades mundanas

Ora, com que estado de espírito um ministro ordenado exercerá sobre os outros a dignidade pastoral se ele próprio estiver enredado em atividades mundanas que deveria reprovar nos demais? É por isso que o Senhor, na ira de uma justa restituição, faz esta ameaça por meio do profeta: “O sacerdote será tratado como o povo” (Os 4, 9).
O sacerdote é como o povo quando aquele a quem se confia um ministério espiritual pratica as ações às quais se entregam os homens cheios de tendências carnais. Tal desordem, Jeremias a deplora com grande dor, ao declarar profeticamente, considerando a destruição do Templo: “Como escureceu o ouro, como se alterou sua esplêndida cor! Foram dispersadas as pedras do Santuário por todos os cantos das praças” (Lm 4, 1).
Que coisa é aqui simbolizada pelo ouro, o mais precioso dos metais, senão a excelência da santidade? E que simboliza “sua esplêndida cor” a não ser a divindade da Religião digna de ser por todos amada? E “as pedras do Santuário” não designam os varões que receberam as sagradas ordens? Qual o significado do vocábulo “praça” senão a amplidão da vida presente? Como o termo grego platos significa amplidão, dele derivou certamente a palavra “praça”. Além disso, a própria Verdade declarou: “Largo e espaçoso é o caminho que conduz à perdição” (Mt 7, 13).
O ouro se obscurece, pois, quando a santidade da vida se avilta pela prática de atividades mundanas. Ele perde seu esplendor quando se apaga a estima manifestada a certos homens até então tidos por virtuosos. Com efeito, quando alguém decai de uma vida santa e adota o modo de agir das pessoas mundanas, o respeito com que era considerado cede lugar ao desprezo, da mesma forma como empalidece e evanesce a cor aos olhos dos homens.

Pelos cantos das praças jazem espalhadas as pedras

As pedras do Santuário são dispersas pelas praças quando aqueles que deveriam, no segredo do Templo, consagrar-se por inteiro ao ministério sagrado em honra da Igreja, procuram seguir as largas vias das ocupações profanas. Ora, as pedras do Santuário eram feitas para aparecer sobre as vestes do sumo sacerdote, no interior do Santo dos Santos.
Assim, quando os ministros da Religião não mais estimulam, pelo bom exemplo, os fiéis a honrarem seu Redentor, não se veem mais sobre os ornamentos do pontífice as pedras do Santuário. E jazem de fato essas pedras dispersas pelas praças quando os ministros das ordens sacras, entregues ao relaxamento dos prazeres, apegam-se aos negócios terrenos.
Notemos bem que o profeta não diz que estão elas espalhadas “nas praças”, mas sim “por todos os cantos das praças”, porque os pastores que assim se dedicam às coisas da Terra querem ser vistos como perfeitos; e embora, arrastados pela sensualidade, sigam as vias largas, procuram permanecer nas esquinas das praças, para receber as honras prestadas à santidade.
Pode-se entender também que as “pedras do Santuário” sejam as mesmas usadas na construção do Santuário. Neste caso, tais pedras jazem dispersas nos cantos das praças quando os homens que receberam as ordens sacras, cuja honra parecia ter origem em sua sublime vocação, ardem do desejo de consagrar-se às atividades mundanas.
Por exigências da caridade, pode eventualmente ser necessário que o pastor se ocupe dos afazeres temporais, mas nunca deve procurá-los com paixão, pelo receio de que, sobrecarregando a alma de quem assim os ama, eles a precipitem das alturas celestes aos fundos abismos. São Gregório Magno. Regra Pastoral, II, 7 (excerto) – (Revista do Evangelho, Novembro/2016, n.179, pp. 6-7)

 
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