No Livro dos Juízes é narrado um dos mais empolgantes episódios da Sagrada Escritura: a miraculosa vitória de Gedeão sobre os madianitas. E, embora seja bastante conhecido, vale a pena fazermos uma leitura atenta desse fato à luz da fé, pois ele pode nos transmitir ensinamentos muito mais profundos e atuais do que pensamos.

Deus ajuda os seus, mas pede-lhes a luta

Já o próprio contexto histórico no qual ele se passa nos apresenta uma lição.

Naquela época, o povo eleito encontrava-se oprimido pelos filhos de Madiã como castigo por ter feito “o mal aos olhos do Senhor” (Jz 6, 1) e, extenuado pelas frequentes devastações e ataques do inimigo, clamou por socorro ao Altíssimo. Em vez de se revoltarem contra Deus ou desconfiarem de sua ajuda, os israelitas tiveram esta bela atitude: reconheceram-se merecedores do castigo e dependentes do auxílio divino.

É importante observar como Deus não lhes oferece uma solução instantânea para seus problemas, resolvendo-os como num passe de mágica. Pelo contrário, escolhe entre eles um homem que haveria de conduzi-los à vitória. Não os desampara em suas aflições, mas pede-lhes a luta, o sacrifício e a disposição de trabalhar efetivamente pelo triunfo do bem.

Este é um modo muito frequente de a Providência formar seus filhos: jamais deixa de ouvir as súplicas de quem se reconhece fraco e pecador, mas exige-lhe a luta e a espera.

Após ouvir da boca de seus inimigos que a
vitória estava com ele, Gedeão pediu perdão
pela falta cometida preparou-se para enfrentar
com ânimo a batalha!
Gedeão e seus trezentos homens na batalha
contra os madianitas -
Bíblia de São Luís IX (séc. XIII), Biblioteca
Pierpont Morgan, Nova York

Trato elevado, em função dos desígnios divinos

Em atenção à prece do povo, o Senhor enviou um Anjo para anunciar a Gedeão a missão de libertar Israel. O celeste mensageiro apresentou-se diante do menor dos filhos de Joás quando ele limpava o trigo no lagar, e saudou-o com estas palavras: “O Senhor está contigo, valente guerreiro!” (Jz 6, 12).

Note-se a elevação e nobreza desse cumprimento, feito enquanto Gedeão realizava um labor humilde e corriqueiro, e nem sequer cogitava em pôr-se a campo para batalhar. Pelo teor de suas respostas, percebe-se que ele considerava com receio a missão que lhe era encomendada e sentia temor do próprio Anjo. Entretanto, este o saúda em função de sua alta vocação, chamando-o de “valente guerreiro”!

Belo exemplo a ser seguido no trato com os demais: sempre devemos procurar ver no próximo a vocação que Deus lhe confiou e as qualidades que lhe outorgou para realizá-la, ainda quando se evidenciem a nossos olhos seus defeitos e infidelidades. Guiados por essa visualização, poderemos ajudá-lo a vencer seus lados maus e incentivá-lo a progredir na perfeição.

Apenas trezentos homens…

Omitamos por brevidade os versículos que descrevem os sinais pedidos por Gedeão para confirmar o anúncio do Anjo, bem como as façanhas que realizou antes de ser assumido pelo Espírito do Senhor, e passemos diretamente para a narração da batalha e seus prolegômenos.

Tendo reunido um volumoso exército, estava Gedeão pronto para avançar quando o Senhor lhe disse: “A gente que levas contigo é numerosa demais para que Eu entregue Madiã em suas mãos. Israel poderia gloriar-se à minha custa dizendo: foi a minha mão que me livrou. Manda, pois, publicar este aviso para que todos o ouçam: quem for medroso ou tímido, volte para trás” (Jz 7, 2-3). Com isso, retiraram-se vinte e dois mil homens, restando apenas dez mil.

O Senhor dirigiu-Se novamente a Gedeão: “Ainda há gente demais. Faze-os descer às águas, e ali farei uma escolha. Aquele que Eu te disser que irá contigo, este te seguirá, e aquele que Eu não te designar, ficará” (Jz 7, 4).

Foi feito como Deus tinha mandado. Quem tomasse a água trazendo-a até os lábios deveria permanecer de um lado; do outro lado ficariam os que se pusessem de joelhos para bebê-la diretamente. Trezentos homens levaram a água com a mão à boca; os demais se ajoelharam. O Senhor, então, determinou: “Com os trezentos homens que lamberam a água, vos salvarei e entregarei Madiã nas tuas mãos. Todo o resto do povo volte para a sua casa” (Jz 7, 7).

Gedeão é encorajado para o ataque

Na noite seguinte, Deus mandou Gedeão avançar. Porém, ordenou- -lhe antes descer até os postos avançados dos madianitas levando por única companhia o seu servo Fara. “Ouvirás o que eles dizem, e sentir-te-ás assim encorajado para atacar o acampamento” (Jz 7, 11).

Gedeão procedeu como indicado. Quando chegaram junto aos alojamentos do inimigo escutaram certo soldado contando a outro o sonho que tivera: um pão de cevada rolava sobre o acampamento, chocando-se com a tenda e lançando- -a completamente por terra. Então, seu companheiro comentou: “Isso não é outra coisa senão a espada de Gedeão […]. Deus entregou em suas mãos Madiã e todo o acampamento” (Jz 7, 14).

Ao ouvir isso Gedeão “prostrou- -se por terra” (Jz 7, 15). Logo depois, retornando ao acampamento israelita, dividiu o exército em três grupos de cem homens, que deveriam portar trombetas e ânforas vazias, dentro das quais haveria uma tocha acesa.

Por piores que sejam
as tormentas pelas
quais passemos neste
vale de lágrimas,
o Senhor jamais
deixará de suscitar
guias e modelos

Quem luta por Deus não pode ser derrotista

Detenhamo-nos para analisar um aspecto importante da narração: Gedeão teve medo antes da batalha e Deus precisou encorajá-lo. Qual era a causa desse medo?

O filho de Joás tinha o natural receio de avançar e atacar, mas tinha, sobretudo, medo de confiar no auxílio do Altíssimo. E para fortalecê-lo em sua missão, Deus deu-lhe provas palpáveis de que a investida seria bem-sucedida.

Após ouvir da boca de seus inimigos que a vitória estava com ele, Gedeão arrependeu-se, prostrou- -se por terra, pediu perdão pela falta cometida e, o mais importante, levantou-se e preparou-se para enfrentar com ânimo a batalha!

Ora, quantas vezes, ao longo de nossa vida espiritual, Deus pede que demos um passo aparentemente muito ousado, que nos atiremos a realizar certo empreendimento arriscado, e nós não o fazemos por duvidarmos do poder d’Ele e depositarmos em nós mesmos toda a confiança?

Se olharmos apenas para nossa fraqueza, nos tornaremos derrotistas. Uma mal-entendida “resignação” tomará conta de nós, fazendo com que sejamos antecipadamente esmagados pelos reveses que toda luta prenuncia.

A atitude de um verdadeiro combatente de Cristo não pode ser esta, mas sim a de Gedeão: diante das dificuldades inerentes ao cumprimento da nossa missão, confiar em Deus. Ao comprovar nossas limitações e infidelidades, devemos bater no peito, pedir perdão, rezar “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…” e seguir adiante com coragem!

Também os soldados precisam confiar

O normal em qualquer batalha é fazer uso das armas. Quanto maior seja seu número e eficácia, maiores serão as possibilidades de alcançar a vitória. Gedeão, entretanto, mandou usar apenas trombetas, ânforas e tochas acesas. 

Para os soldados tal atitude deve ter constituído uma incógnita não pequena… Com que se defenderiam ao serem atacados pelas flechas, lanças e espadas do inimigo? E aqui vemos como Deus pede também aos seguidores de Gedeão uma prova de confiança. Ao capitão é exigida uma fé absoluta nos desígnios da Providência; ao seu exército cabe acreditar naquele que os conduzia.

“Olhai para mim, disse ele, e fazei como eu. […] Tocarei a trombeta com aqueles que me acompanham, e então tocareis também as vossas em volta de todo o acampamento, gritando: Pelo Senhor, e por Gedeão!” (Jz 7, 17-18). Eis a chave da vitória: olhar para quem Deus colocou como guia naquela situação concreta e imitar seu exemplo.

Os homens que seguiam Gedeão não levantaram objeções a ordem tão inusitada, mas agiram conforme ele determinara. Como prêmio à sua fidelidade, “o Senhor fez com que os madianitas voltassem a espada uns contra os outros” (Jz 7, 22). Os que fugiram foram perseguidos pelo exército dos israelitas, que então engrossou consideravelmente, recebendo reforços das “tribos de Neftali e de Aser e de todo o Manassés” (Jz 7, 23).

São Bernardo - Pinacoteca
Vaticana; Santa Catarina de
Siena troca o coração com
Cristo - Metropolitan
Museum of Art, Nova York

É assim que Deus forma seus filhos e os transforma em heróis da fé e da confiança. Promete-lhes a vitória e a glória, mas ensina-lhes que elas só são conquistadas através de provas e lutas muitas vezes terríveis.

A fé nos transformará em valentes guerreiros

Em cada fase histórica, Deus elege homens e mulheres para guiar a humanidade. Nos antigos tempos Ele Se valeu dos juízes, patriarcas e profetas; no Novo Testamento, suscita Santos e Santas aos quais enriquece com dons e carismas próprios a fazer vencer o bem nas mais variadas circunstâncias.

Um Santo Odilon, um São Bernardo de Claraval ou uma Santa Catarina de Siena, para citar apenas alguns nomes, exerceram importante papel no desenvolvimento da Igreja e da sociedade na Idade Média. No século XVII, quando o jansenismo se alastrava perdendo inúmeras almas pelo desespero da misericórdia divina, Nosso Senhor apareceu a Santa Margarida Maria Alacoque, a qual, pregando a confiança plena no perdão do terníssimo Coração de Jesus, tornou-se um norte para os católicos naquele período. São João Bosco teve por missão fortalecer e iluminar a fé dos jovens numa época de ateísmo rompante. E a lista, se houvesse espaço para ampliá-la, seria variadíssima e interminável.

Uma análise cuidadosa da História, feita com os olhos da fé, nos revela como Deus não esquece seus filhos nos momentos de luta e tribulação, e nos conduz à certeza de que Ele nunca deixará sua grei abandonada, enfraquecida e abatida “como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 36).

Por piores que sejam as tormentas pelas quais passemos neste vale de lágrimas, o Senhor jamais deixará de suscitar guias e modelos a apontar com clareza o caminho para o Céu. Se soubermos prestar ouvidos a essas vozes proféticas e tivermos confiança na missão que Deus lhes deu, seremos transformados pela ação do Espírito Santo, apesar das nossas faltas e fraquezas, em valentes e vitoriosos guerreiros, capazes de vencer os exércitos madianitas e de galgar qualquer obstáculo que d’Ele nos separe. (Revista Arautos do Evangelho, Novembro/2018, n. 203, p. 32-34)