"Santo Antão, Abade", por Antonio Brea Palazzo Bianco Gênova (Itália) |
Ao deparar-se com o título deste artigo, o leitor quiçá tenha uma surpresa. Afinal, a mística não é apenas o prêmio que recebem nesta Terra as almas muito virtuosas? Por que fazer tal convite extensivo a todos? A pergunta é motivada por uma conceituação errônea do que seja a mística, bastante difundida em nossos dias. E o prejuízo espiritual provocado por este equívoco é bem maior do que à primeira vista se poderia imaginar.
Algumas conceituações errôneas
Para a grande maioria das pessoas, a palavra mística soa vagamente à ação misteriosa de forças superiores, alheias às da experiência racional comum. Para outros, ela se identifica com certos arroubos de alma como seria o impulso simbólico originado por um garboso hino ou uma bela bandeira.
Já sob uma perspectiva cristã, a mística costuma ser identificada com fenômenos sobrenaturais extraordinários, como aparições, revelações, estigmas, êxtases, levitações, etc., ou seja, com aquelas inefáveis experiências divinas reservadas a almas que, avançadíssimas no árduo caminho da santidade, são objeto da especial predileção de Deus. Em consequência, ela seria inatingível para a grande maioria dos fiéis.
Deixando de lado os dois primeiros conceitos enunciados - que embora alheios à Teologia, são úteis e, em certo sentido, válidos - passemos a analisar o terceiro, por ser o de maior interesse sob o ponto de vista pastoral. Pois, como veremos ao longo deste artigo, o católico que não entrou pelas vias da mística - ainda que seja um ancião, uma pessoa consagrada a Deus, de intenso afã apostólico, ou um sábio de ampla cultura teológica - não saiu ainda do estado de criança na sua vida espiritual.
A mística é algo muito mais acessível do que se costuma imaginar. O problema está em saber o que ela é de fato, e daí partirmos para conquistá-la - podem acreditar - sem muito esforço.
O que é, então, a mística?
Os fenômenos extraordinários que nos impressionam na vida de certos santos fazem parte da mística, mas não constituem parte essencial e nem sequer necessária dela. Aliás, referimo-nos de propósito a "certos santos", pois não são necessárias aparições, revelações ou estigmas para alcançar o Céu, nem é necessário ter sido objeto de tais fenômenos extraordinários para ser proposto como modelo de vida pela Igreja. Como definir então a mística?
Segundo o teólogo dominicano Frei Antonio Royo Marín, OP, ela consiste "no operar dos dons do Espírito Santo ao modo divino ou sobre-humano, que produz ordinariamente uma experiência passiva de Deus ou de sua ação divina na alma".1 Neste enunciado, que vai ser desenvolvido no decorrer deste artigo, há dois elementos principais: o operar dos dons do Espírito Santo e a experiência passiva de Deus. Analisemos o primeiro para melhor entendermos o segundo e, por fim, sabermos por que a mística está ao alcance de todos.
Diferença entre virtudes e dons
Para compreendermos como se dá a ação dos dons na alma, podemos nos reportar ao artigo de Mons. João Scognamiglio Clá Dias, publicado em número anterior desta revista. 2 Nele encontraremos uma belíssima síntese do que se passa em nosso interior depois de recebermos a vida sobrenatural pelo Batismo e uma detalhada e clara explicação do funcionamento dos dons.
Esse Sacramento infunde em nós, junto com a graça que nos torna verdadeiros filhos de Deus, as virtudes e os dons que conferem dinamismo ao nosso organismo sobrenatural, dando-nos a capacidade de fazer o bem e evitar o mal de forma meritória aos olhos de Deus. Entretanto, grandes são as diferenças entre ambos. E para torná-las claras, muito eloquentes são os exemplos dados pelo fundador dos Arautos do Evangelho.
A mística costuma ser identificada com fenômenos sobrenaturais extraordinários,como aparições, revelações, estigmas, êxtases, levitações -"São Francisco de Assis recebe os estigmas" Museu de Belas Artes de Córdoba (Espanha) |
"Para compreender melhor o desempenho das virtudes na alma", escreve ele, "lembremo-nos da clássica figura da criança que caminha de mãos dadas com sua mãe: sem dúvida alguma quem avança é o menino, sujeito à inexperiência de sua tenra idade e sustentado pelo amparo materno. Muito diferente seria se a mãe, receosa dos perigos a que se expõe o frágil filho andando por si, o tomasse no colo. O esforço do deslocamento passaria a depender unicamente da vontade dela, e já não mais das pernas pouco ágeis do pequeno. Esta segunda situação é uma pálida imagem da ação benfazeja dos dons. O Espírito Santo nos ‘carrega no colo', sublimando, mediante suas iluminações e moções especialíssimas, nosso próprio modo de pensar, querer e agir, protegendo-nos de todas as ameaças que nos circundam durante a vida".3
Ou seja, ao praticarmos uma virtude, somos nós que agimos e, portanto, o fazemos de modo sempre imperfeito. É como se nos fosse pedido executar num violino Stradivarius, único no mundo, uma bela partitura. Só após muito treino sob a orientação de um professor experimentado seríamos capazes de fazê-lo com alguma perícia. Caso contrário, ao friccionar com o arco as cordas do valiosíssimo instrumento apenas produziríamos sons cacofônicos.
Mas, e se as nossas mãos fossem assumidas por um Anjo? A situação passaria a ser muito diferente, pois o violino produziria os mais belos e harmoniosos sons, sem mérito de nossa parte, salvo o de não oferecer resistência. Assim acontece com os dons. Através deles, o próprio Espírito Santo tange as cordas de nossa alma e opera em nós, aperfeiçoando de modo divino aqueles atos que, pelo mero exercício das virtudes, eram irremediavelmente defectivos.
A experiência do divino na alma
Eis a essência da mística: a ação dos dons. Quando eles atuam, opera em nosso interior um fator incomparavelmente superior a nós... e quanto! E isto nos leva a compreender o segundo elemento da definição enunciada: a experiência inefável que constitui o privilégio do místico.
Nessas horas - não sempre, mas de ordinário - percebemos claramente em nosso interior esse "algo" inteiramente superior e transcendente à nossa natureza, cuja ação é patente não ter sido produzida por nós, mas que está dentro de nós: é o próprio Espírito Santo que inabita nossa alma e nela atua, fazendo sentir, como diz Santa Teresa, "sua divina companhia".4
É a patiens divina - experiência pessoal do divino -, de que já falava o Pseudo-Dionísio.5 Caberá à alma apenas consentir com sua vontade, não pondo obstáculos a essa ação, mas deixando-se levar pelo Espírito Santo como, no exemplo dado por Mons. João, a criança é levada no colo pela mãe.
Os momentos de aridez
É oportuno insistir: nem sempre a experiência sensível acompanhará os atos místicos, como acontece durante as aridezes em nossa vida espiritual, nas quais, embora possamos estar agindo da melhor forma possível, nossa sensibilidade passa por um completo apagamento. São as "noites escuras" de que nos fala São João da Cruz, ele mesmo grande místico. Isso não significa que nessas circunstâncias os dons não ajam em nosso interior. Muito pelo contrário, eles aperfeiçoam de modo especial as virtudes, levando-as, no caso dos santos que correspondem à sua ação, até o heroísmo.
Deus retira a sensibilidade apenas para aumentar o mérito daquela pessoa. Na realidade, é Ele quem eleva a alma até este grau de fidelidade. Foi o ocorrido com Santa Teresinha do Menino Jesus, que passou na mais completa aridez os últimos anos de sua vida. Sem embargo do que, foi uma grande mística, como nos atesta a elevação de seus escritos, ricos de uma doutrina inconcebível, humanamente falando, em uma juveníssima freira.
Pode se separar a ascética da mística?
Qual é, então, a origem da noção de mística apontada nas primeiras linhas deste artigo, que a reduz aos fenômenos sobrenaturais extraordinários?
Ela se remonta ao século XVIII, quando autores como o padre Giovanni Battista Scaramelli decidiram mudar a orientação do estudo das vias da perfeição cristã, preconizando a separação entre a ascética - isto é, aquela parte do progresso espiritual que cabe ao esforço do fiel - e a mística.6 Na opinião desses estudiosos, explica o teólogo dominicano Reginald-Garrigou-Lagrange, "a ascese trata das virtudes que conduzem à perfeição segundo a via ordinária, enquanto que a mística trata da via extraordinária, à qual pertenceria a contemplação infusa dos mistérios da Fé. [...] Para estes autores, a ascese é não só distinta, mas separada da mística; não se ordena a ela; pois a mística trata apenas das graças extraordinárias que não são necessárias à plena perfeição da vida cristã".7
Separados assim no campo da teoria o papel das virtudes e dos dons, o esforço do homem e a ação de Deus na alma, passou-se a considerar o caminho ascético como a via comum para a santidade, desvinculada da mística, criando a ideia de que o Espírito Santo só age nas almas por meio dos seus dons após elas terem galgado, pela prática da virtude, as elevadas escarpas só acessíveis às almas de escol.
Entretanto, sem a ação dos dons, a alma fica privada de um auxílio imprescindível para a conquista da santidade. Ela desanima com facilidade e sua vida espiritual fica reduzida, por falta de estímulo, à mediocridade de um eterno principiante.
Quantas vezes ao longo de nossa vida recebemos um convite d'Ele para nos adentrarmos mais no seu amor... - Casamento Místico de Santa Catarina de Sena" - Santuário de Santa Catarina, Sena (Itália) |
Na realidade, não existe separação entre ascética e mística, salvo para efeitos didáticos e, mesmo assim, com muitas reservas. Ambas se interpenetram constantemente, pois jamais podemos separar o esforço pessoal do auxílio divino. Não há, portanto, o asceta puro nem o místico puro, e se alguma vez se fala nisso é para indicar o predomínio de um ou outro estado na pessoa. Quem vive frequentemente mergulhado na mística, pode-se dizer que é um místico, mas podemos ter certeza de que esse estado não é permanente.
Da mesma forma, por muito que alguém, tal como um asceta do deserto da Tebaida nos primeiros séculos da Igreja, possa parecer estoicamente esforçado nas vias da virtude, não tenhamos dúvida de que, se ele atingiu alguma perfeição, o fez com o auxílio dos dons do Espírito Santo, mesmo sem o perceber.8
A mística nos é dada desde o começo
A porta da mística, em consequência, está aberta para todos, e para cruzar seu umbral não é preciso um árduo "noviciado", como alguns poderiam ser levados a pensar. A mística, afirma Frei Royo Marín "está tão longe de ser uma graça anormal ou extraordinária - como as graças gratis datæ -, que ela começa, pelo contrário, em pleno estado ascético, e todos os cristãos participam dela mais ou menos, mesmo quando se encontram nos albores da vida espiritual".9
De fato, nesta fase Deus costuma descortinar aos olhos da pessoa os vastos panoramas da santidade, dando um antegozo já nesta vida do que virá no fim, quando cruzarmos os umbrais da eternidade. Esta experiência nos dá forças para, mais adiante, enfrentarmos as dificuldades que a vida apresentará.
Quem sentiu a consolação que invade a alma depois de uma boa Confissão, a alegria da Primeira Comunhão, ou, no caso de uma conversão, a bondade de Deus que abre os braços para acolher e perdoar como o pai da Parábola do Filho Pródigo, não pode recordar sem saudades esses momentos em que entendeu os conceitos de perdão ou bondade com mais clareza do que se os tivesse estudado no melhor manual de teologia. Essa compreensão com sabor é toda sobrenatural e nos é dada pela ação dos dons em nossa alma.
A este respeito, acrescenta Frei Royo Marín: "Esta doutrina, cheia de luz e de harmonia, devolve à vida cristã toda a grandeza e sublimidade que admiramos na época da Igreja primitiva, na qual, sem dúvida alguma, o espírito cristão alcançou seu máximo florescimento e esplendor. Na época dos Apóstolos e dos primeiros séculos do Cristianismo, o ‘sobrenatural' - entendido no sentido mais impressionante, como sinônimo de heroico e sobre-humano - era a atmosfera normal que se respirava na Igreja de Jesus Cristo".10
Não fechemos as portas à mística
Tendo sido batizados e mantendo o estado de graça, os dons estão em nosso interior e, por assim dizer, sôfregos por agir. Eles são comparados às velas arvoradas que permitem ao barco receber de forma eficiente o vento para se locomover. Da mesma forma, o sopro do Espírito Santo quer nos fazer atingir rapidamente o porto da santidade, mas, se deixarmos as velas recolhidas... impossível será. O Divino Consolador está desejoso de Se comunicar conosco com intensidade crescente, mas, muitas vezes, não encontra nossa correspondência. Por que acontece isto?
"Assim, de graça em correspondência, de correspondência em graça, a pessoa sobe até o píncaro da mística, onde Deus a espera" - O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira participando de uma celebração Eucarística no Santuário do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo, em 25/12/1989 |
Quantas vezes ao longo de nossa vida recebemos um convite d'Ele para nos adentrarmos mais no seu amor... Será, por exemplo, um toque místico ao nos depararmos com a expressão maternal de uma imagem de Nossa Senhora. Nosso coração se sente tocado por esse olhar. O que aconteceu? Mais do que a expressão fisionômica de uma obra de arte, a ação de um dom do Espírito Santo nos deu com luminosa clareza a noção da imensa bondade de Maria Santíssima, que não conseguiríamos adquirir em anos a fio de estudos mariológicos.
Este singelo fenômeno, que pode acontecer a qualquer pessoa, agrada, é claro. Entretanto, não lhe damos a suficiente atenção porque logo somos absorvidos pela solicitude das coisas terrenas. Desviada nossa atenção para um programa fútil de TV, uma conversa banal ou um objeto material, a impressão e os efeitos dessa graça ficarão asfixiados, quando só ela bastaria para nos encher a alma e ocupar nossas cogitações durante algumas horas.
Essa imperfeita correspondência, muito frequente, vai nos tornando cada vez mais insensíveis e impede que esses favores sobrenaturais se multipliquem a ponto de se tornarem comuns. Outra deveria ser nossa atitude, pois, como explica o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, "quem procede bem diante de uma graça mística convida Deus a dar outra maior ainda. E assim, de graça em correspondência, de correspondência em graça, a pessoa sobe até o píncaro da mística, onde Deus a espera. Nesse sentido, embora a substância da santificação não seja a mística, mas o amor a Deus, a mística é uma possantíssima auxiliar da santificação".11
Se quisermos ser santos, sejamos místicos
Mesmo diante do panorama aberto pela doutrina contida neste artigo, podemos ficar desanimados perante as circunstâncias de nossos dias, tão avessas a tudo o que é sobrenatural. Mas quiçá seja isto mesmo o contributo mais decisivo para alimentar nossa esperança.
Quando o fator humano entra em falência, é hora de recorrer com mais afinco ao sobrenatural: "Quando me sinto fraco, é então que eu sou forte" (II Cor 12, 10), diz o Apóstolo, confortando todos aqueles que sentem a própria contingência na hora de trilhar as vias da virtude.
Eis o estado ideal para que Deus exerça sua ação de forma desimpedida. Do contrário, o orgulho humano, iludido com sua suposta autossuficiência, não reconhece o papel de Deus na santificação e coloca obstáculos insuperáveis. Tenhamos a plena certeza de que se Deus chama todos à santidade, Ele haverá de dar os meios para alcançar essa meta. E dentre eles, uma profusão de graças místicas nos acompanhará ao longo do caminho. Tenhamos a alma inteiramente aberta para elas e Ele fará o resto! (Revista Arautos do Evangelho, Junho/2013, n. 138, p. 20 à 25)