Ao findar a guerra em 1918, inicia-se o período que os historiadores denominam entre-deux-guerres.[1]

Os harmônicos acordes da valsa são substituídos pelos estridentes e cacofônicos sons do jazz; as sóbrias e graves carruagens puxadas a cavalo são suplantadas pelo automóvel, que imprime novo ritmo à existência; e as senhoras, até então rainhas do lar, dão os primeiros passos rumo à igualdade dos sexos.

Quase de uma só vez, as saias sobem dos tornozelos aos joelhos, libertando os passos dos longos e belos vestidos de outrora; encetava-se assim resoluta caminhada cujo termo final era – todos o sentiam – o despudor.

Os cabelos naturais das senhoras, cuidadosamente penteados, como coroas a honrar sua dignidade, são cortados em aras à moda e ao pragmatismo. Era o estilo chamado à la garçonne.[2] O rouge e o bâton, que a dama ciosa de sua honra nunca usaria, irrompem nos costumes, até então recatados.

O riso, que antes ocupava discreto papel na vida, passou a ser considerado símbolo necessário de felicidade – ideia amplamente difundida pelo cinema de Hollywood –, relegando a segundo plano, nas reuniões sociais, todos os que não sabiam contar piadas e não tinham o pseudocarisma de provocar constante hilaridade.

Era inerente a esse novo modo de ser o desenfreado desejo de ganhar dinheiro, muito dinheiro. Deus, moral, reflexão, tradições, requinte, bom gosto, educação, eram mitos do passado e deviam ser abandonados, pois o importante era viver “bem” o momento presente.

Essa nova mentalidade, chamada de “moderna”, cujos derradeiros e amargos frutos ainda provamos em nossos dias, Dona Lucilia a rejeitou, sempre à sua maneira cortês e afável, mas ao mesmo tempo séria e firme.

Aceitá-la constituía, no seu modo de ver, o abandono de uma via que jamais cumpriria deixar. Para ela, a Religião não se limitava à observância dos sagrados preceitos da Lei de Deus e à prática de piedosas devoções, desligadas da boa ordem temporal.

Incluía, além disso, uma concepção da vida modelada segundo as revelações e os ditames do Sagrado Coração de Jesus, que deveriam abarcar todos os aspectos da atividade humana

Conforme essa concepção, ela procurava primorosamente moldar seu dia a dia, o governo da casa, a educação dos filhos e até sua vida social.

Um pequeno e comovedor episódio ilustrará, com nitidez, a resistência que ela vinha opondo ao espírito “moderno”.

 

Dona Lucilia em Paris, no ano 1912

Dona Lucilia recusa a nova moda

Durante um almoço do qual participavam amigos e parentes, tentavam todos convencer Dona Lucilia a cortar os cabelos à la garçonne e a se pintar, pois era a única pessoa daquela roda social que não aderira à nova moda.

Talvez sua mansa mas inabalável persistência na fidelidade aos antigos costumes importasse em certa fricção moral com os mais chegados.

Enquanto pôde, durante a conversa, Dona Lucilia foi jeitosamente esquivando o problema, para não se mostrar desagradável aos visitantes; porém, estes continuaram sua incômoda insistência.

Em determinado momento, notando que as pressões passavam do limite tolerável, num assunto só a ela concernente, reagiu, como tantas vezes fazia, guardando expressivo silêncio.

Sentado ao lado dela, Plinio, então com aproximadamente doze anos, que possuía um natural loquaz e afirmativo, assistia calado a toda a conversa; não era permitido aos menores falarem à mesa.

Encantado com sua mãe e notando nela a inteira adequação da apresentação externa com o nobre interior de alma, ao perceber o silêncio em que ela se pusera, resolveu intervir para sustentar a boa posição.

Afastou sua cadeira e ajoelhando-se aflito diante de Dona Lucilia, carinhosamente implorou:

Mamãe, a senhora vai me prometer que enquanto viver não cortará o cabelo nem usará bâton?

Enternecida com a atitude de seu filho, voltou-se para os presentes e, como que gracejando, encerrou suave e amavelmente a discussão:

Estão vendo? Plinio não quer que eu corte os cabelos. Então não vou cortar…

Um silêncio geral pairou sobre a sala. E nunca mais familiares ou amigas tocaram nesse assunto até o fim dos longos dias de Dona Lucilia.

Quando, pela última vez, seus filhos a viram jazente em seu caixão, lá estava ela com seus veneráveis cabelos prateados e seus lábios, para sempre cerrados, isentos de bâton. Morreu atendendo ao pedido que seu filho, quando ainda menino, com um drama na alma, genuflexo lhe fizera.

A pretexto dos bondes, as saias encurtam

Com referência ao traje feminino, Dona Lucilia notou o primeiro sinal de decadência moral não muito depois de se generalizar o uso do bonde elétrico, como principal meio de transporte urbano.

Ela assistira à inauguração da primeira linha em São Paulo, em 1900. Anos depois, contava a seus filhos haver sido tão grande a euforia da população, pelo fato de poder andar num veículo movido a eletricidade – somando-se a isso o transporte gratuito no primeiro dia –, que pessoas viajavam até em cima do teto do bonde.

Tal euforia serviu de ocasião para uma grave e profunda modificação na moda feminina. Dona Lucilia comentava que as senhoras, por usarem saias que iam até o tornozelo, tinham certa dificuldade para descer do bonde, pois um traje tão comprido fazia tropeçar nos degraus.

Por estas e outras razões, os vestidos foram se encurtando, ao longo dos anos, até chegarem à altura dos joelhos. A cada encurtamento, Dona Lucilia via o perigo aumentar.

 

Plinio aproximadamente em 1920

O “estouro da boiada”

Quem, entrando no Coliseu romano, não terá sido tomado por uma sensação de respeito e veneração, pensando na imolação dos milhares de mártires que ali foram devorados pelas feras, por se recusarem a queimar incenso aos ídolos?

Não menor, e por certo mais subtil, tem de ser o heroísmo de alguém que queira manter a integridade dos princípios ensinados pela Santa Igreja, numa sociedade que caminha em rumo oposto à verdade e ao bem.

É pelo pânico dos efeitos desta separação, em relação ao próprio ambiente, que milhões de pessoas cedem e espiritualmente perecem.

Perante a avassaladora onda forjada em Hollywood, a atitude de Dona Lucilia foi a de enfrentar com serenidade tudo quanto contundia suas convicções católicas.

De futuro contaria ela, de modo discreto, embora manifestando toda a sua censura, um escândalo ocorrido por aquela ocasião em São Paulo. O fato passou-se entre famílias abastadas e, portanto, muito em destaque na sociedade.

Deixando sua esposa, um homem foi morar com certa senhora que também abandonara o marido, passando a viver ambos em regime de concubinato duplamente adúltero.

Para conferir ares de legitimidade a seu péssimo proceder, foram ao Uruguai e, de lá voltando, fizeram constar terem-se casado no civil.

Amigas e conhecidas ouviram, da própria concubina, que aquela união era verdadeiramente um “casamento”, o que redundava em equiparar o concubinato ao matrimônio.

Manifestando por sua fisionomia toda a censura que o fato lhe causava, Dona Lucilia, ao narrar este episódio, acrescentava haver ainda naquela época restos de moral, razão pela qual o acontecido provocou em todos uma atitude de repúdio.

Certo dia, entretanto, uma parente de Dona Lucilia foi fazer compras na Casa Mappin – estabelecimento que, naquele tempo, só trabalhava com artigos muito finos, sendo por isso frequentado pela melhor sociedade – e presenciou uma cena insólita.

Ouviu, de repente, uma algazarra, pouco demorando a deparar-se com duas mulheres que se atracavam a tapas e pontapés. Eram a esposa legítima e a concubina mencionadas acima.

Conhecida de ambas, a referida senhora preferiu retirar-se rapidamente do local, com receio de acabar por ver-se envolvida naquela briga indecente, o que não queria por nenhum preço.

Almoçando esse dia em casa dos Ribeiro dos Santos, contou o fato, provocando vivos comentários à mesa. Dona Lucilia ouviu tudo em silêncio.

No entanto, quando se começou a dizer que o concubinato era um absurdo, mas que as senhoras deveriam suportar com mais paciência a sem-vergonhice dos maridos, ela suspirou profundamente e disse:

Suportar, suportar! Não esperem muito… Os homens pintaram tanto que deixaram as mulheres numa situação que não suportam mais. E, além dos costumes péssimos dos maridos, o cinema e a literatura imorais fazem com que elas vão ficando tão ruins quanto eles. Esse fato mostra que está começando o “estouro da boiada”…

Era uma judiciosa observação, uma previsão muito bem feita, porém as palavras de Dona Lucilia foram acolhidas com gargalhadas por alguns, não porque achassem ridículo o que dizia, mas porque lhes divertira a expressão “estouro da boiada”.

Não entenderam o fundo do pensamento, que o correr das décadas não fez senão confirmar. Hoje o divórcio generalizou-se, e o concubinato também: “a boiada” debandou.

 

Damas da aristocracia paulista participam de uma festa, no tempo da infância de Plinio
Militares norte-americanos fotografados durante a ceia de Ação de Graças, no ano 1918

Despretensão, placidez e esmero

Inteiramente segura de si, Dona Lucilia não acompanhava o frenesi, as aflições, o espírito competitivo e os sustos tão comuns entre as senhoras e moças de seu tempo, que se deixavam influenciar pela onda hollywoodiana.

O que restava de pomposo no teor de vida de então ainda exigia o comparecimento a bailes em elegantes e distintos trajes, inspirados em geral nos modelos franceses.

Revistas de Paris, assinadas pelas senhoras da alta sociedade paulista, traziam fotografias das mais recentes e finas toilettes femininas.

Qual devia ser a cor da seda do vestido para se harmonizar com certo penteado; como devia ser a combinação do chapéu com os sapatos e a bolsa; que joias estavam mais adequadas a determinado traje, tudo era meticulosamente analisado e discutido pelas leitoras, tendo em vista as reuniões sociais.

Com frequência as senhoras mandavam executar seus projetos numa grande casa especializada, La Saison, muito bem decorada ao gosto francês.

A proprietária, Madame Françoise, brasileiramente chamada de Dona Francisquinha, ou suas auxiliares, costumavam ir às casas das clientes para levar amostras de tecidos, tirar as medidas e fazer as provas.

Dona Lucilia, sem fugir à regra, igualmente se esmerava em compor e desenhar seus vestidos, comprar o tecido e exigir a perfeita confecção de seus trajes.

Participava também das animadas conversas sobre tais temas. No entanto, nunca se deixava tomar pela agitação suscitada pelo assunto.

Quando chegava o dia de alguma festa, uma expectativa ardente tomava a maior parte das senhoras. Dona Lucilia estava preparada com tanto apuro quanto as outras.

Certa de seu bom gosto, mas sem a menor pretensão, denotava aquela tranquilidade e serenidade que nunca a abandonavam.

Afirmando-se desse modo, mantinha-se fiel à antiga placidez paulista, em meio a um mundo que ia aderindo cada vez mais à agitação da vida moderna.

Fidelidade, mesmo ao preço do isolamento

A admirável coerência de Dona Lucilia custou-lhe, no entanto, um terrível tributo, que ela suportou com a firme resignação própria a uma alma católica: o isolamento.

À medida que a nova mentalidade se difundia por toda parte, os que permaneciam fiéis às tradições e ao modo de ser do passado iam sendo postos de lado, caindo sobre eles a dura pena do ostracismo.

Suas conversas, outrora apreciadas como atraentes, já não mais interessavam. Suas atitudes cerimoniosas não condiziam com os padrões ditos modernos. Só o engraçado, o excitante, o espontâneo, tinham direito de cidadania.

Foi quando esses ventos de mudança sopravam mais fortes que Dona Lucilia viu seus filhos atingirem a adolescência, fase tão delicada na vida de uma pessoa, na qual tudo se pode ganhar ou perder.

Para ­Rosée, já com doze anos, havia ainda a vantagem de ser educada no ambiente doméstico. Quanto a Plinio, pelo contrário, aproximava-se inevitavelmente o dia em que teria de frequentar algum colégio.

Tendo recebido elevada educação, era necessário que enfrentasse agora a luta contra o respeito humano. Auxílio do Céu nunca lhe faltaria, nem as fervorosas orações de sua mãe.

No entanto, quantas apreensões sofreu o coração de Dona Lucilia!

 
Extraído, com pequenas adaptações, de: Dona Lucilia. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2013, p.226-231

 

Notas
[1] Período compreendido entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.
[2] Expressão francesa que significa aproximadamente “à moda de rapazote”.