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Espiritualidade


O pecado de nossa época
 
AUTOR: PE. WINSTON DE LA CONCEPCIÓN SALAZAR ROJAS, EP
 
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A perda do senso religioso levou o Papa Pio XII a declarar que o pecado do século XX era a perda do senso do pecado. Serão essas palavras do pranteado pontífice ainda aplicáveis aos dias de hoje?

Imaginemos um enfermo que se nega a aceitar sua condição. Se o senso comum mostra-lhe claramente o mal de que sofre, é de se esperar que ele o admita e procure remediar. Com efeito, um passo fundamental para qualquer pessoa obter a cura é conhecer e reconhecer sua enfermidade, e querer curar-se. Para os antigos gregos, esse “autoconhecimento” era tão importante que haviam inscrito no célebre templo de Apolo, em Delfos, este aforismo: “Conhece- -te a ti mesmo”. Inspirando-se nele, o filósofo Sócrates dizia a seu discípulo Alcebíades: “O fato com o qual sempre nos defrontamos é este: conhecendo- nos a nós mesmos, poderemos saber como nos cuidarmos melhor”.1hijo_prodigo_alsacia_colmar_cat_s_martin.jpg

Ora, o cristão, além desse mero conhecer-se psicológico, deve reconhecer- se pecador, como afirma São João: “Se reconhecemos nossos pecados, então Deus Se mostra fiel e justo, para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que nunca pecamos, fazemos dele um mentiroso e sua palavra não está em nós” (I Jo 1, 9-10).

Portanto, como nos relembra o Bem-aventurado João Paulo II, “reconhecer- se pecador, capaz de pecar e de ser induzido ao pecado, é o princípio indispensável do retorno a Deus”.2 Foi esta a experiência de Davi, que exclama ao ser advertido pelo Profeta Natã (cf. II Sm 11-12): “Eu reconheço a minha iniquidade, diante de mim está sempre o meu pecado. Só contra Vós pequei, o que é mal fiz diante de Vós” (Sl 50, 5-6). Um exemplo sobremaneira comovedor de reconhecimento do próprio pecado, encontramo-lo na atitude do filho pródigo: “Meu pai, pequei contra o Céu e contra ti” (Lc 15, 21).

“Não há castigo, Deus não existe”…

Hoje em dia, entretanto, essa salutar atitude de reconhecimento da própria culpa – o velho “conhece-te a ti mesmo” dos gregos – parece não encontrar mais lugar em nossa sociedade, pois esta se assemelha ao suposto doente mencionado acima. Ela prefere ignorar seu mal e continuar cantando nesciamente: “Tout va très bien, Madame la Marquise – Vai tudo muito bem, Senhora Marquesa”.

Trata-se de uma canção francesa de 1935, na qual se narra com fina ironia a tragédia de uma nobre dama que, tendo se ausentado de seu castelo, chama por telefone cada um de seus criados para perguntar se há novidades, e estes respondem de modo invariável: “Vai tudo muito bem”… e aos poucos a põem a par da calamidade que sobre ela se abateu.

– Alô! Que notícias você me dá?
– Nada de novo, Senhora Marquesa.
Tudo vai muito bem, com exceção de uma ninharia: morreu vossa égua cinzenta.
– A égua! Como aconteceu isso?
– Durante o incêndio dos estábulos…
– Os estábulos!! Incendiaram–se?
– Foram atingidos pelas chamas de vosso castelo.
– O castelo!!! Que aconteceu?
– O Senhor Marquês, não suportando a notícia de que estava arruinado, suicidou-se e, ao cair, derrubou uma vela que ateou fogo nas cortinas e incendiou o castelo. Quanto ao mais, porém, vai tudo muito bem…!

Poderíamos talvez perguntar-nos se não haverá uma analogia entre a negligente atitude do mundo atual, ante os perigos que o ameaçam, e a daqueles que, na época de São Paulo, negavam a ressurreição e a vida eterna, e diziam: “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”

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“A morte do pecador” – Igreja do Senhor do Bonfim, Salvador
Gustavo Kralj

(cf. I Cor 15, 32); pois, diz o ímpio em sua arrogância: “não há castigo, Deus não existe” (Sl 9, 25). Esse endurecimento do coração talvez seja o mais sério sintoma da enfermidade do mundo contemporâneo, que consiste em impugnar a própria noção de pecado e suprimir a distinção entre o bem e o mal, ressaibo da velha heresia pelagiana que subsiste ainda larvadamente em muitos ambientes.

A malícia do pecado

Contudo, pela Fé e pela experiência nos damos conta de que o pecado é sem dúvida o maior de todos os males. “Segundo as Escrituras, é a causa profunda de todo o mal”, afirmou Bento XVI; entretanto, acrescentou, “muitos não aceitam a própria palavra ‘pecado’, porque ela pressupõe uma visão religiosa do mundo e do homem”.3

O pecado é, além disso, uma ingratidão e uma rebelião contra Deus, e prejudica quem o comete, pois o torna seu escravo (cf. Jo 8, 34). O pecado envenena o convívio entre os homens, introduz a concupiscência, a violência e a injustiça, provoca situações sociais e instituições contrárias à bondade divina.4

O pecado acompanha o homem desde os albores de sua existência: “A Revelação dá-nos a certeza de Fé de que toda a História humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos primeiros pais”.5 Todos os seus descendentes haveriam de sofrer suas consequências: enfermidade, dor, cansaço e morte. Por isso “na sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original, mesmo na interpretação dos fenômenos sociais e na construção da sociedade”.6

Por fim, o pecado arrebata ao homem a suprema felicidade de ver a Deus, privilégio reservado aos puros de coração (cf. Mt 5, 8), e causa uma forma de cegueira muito grave, que é a da alma. “Com efeito, Deus é visível para quem é capaz de vê-Lo, porque mantém abertos os olhos da alma. Pois embora todos tenham olhos, alguns os têm obscurecidos e por isso não veem a luz do Sol. Ora, se os cegos não veem, não é porque o Sol deixou de brilhar: sua falta de visão deve ser atribuída a si mesmos e a seus próprios olhos. Assim também tu tens os olhos da alma toldados por teus pecados e tuas más ações. O homem precisa ter a alma pura, como um espelho reluzente. Se o espelho estiver embaçado, o homem não poderá contemplar nele o seu rosto; da mesma maneira, se houver no homem o pecado, ele não será capaz de ver a Deus”.7

Consciência e senso do pecado

Ressoa no santuário interior do homem uma voz que aponta para uma lei superior não imposta por ele a si mesmo, mas à qual deve obedecer. E esta o adverte que ele “deve amar e praticar o bem, e fugir do mal”. Esta voz é a consciência que fala ao homem “na intimidade de seu coração”.8

Entretanto, pode acontecer na História que essa voz pareça apagar-se. De fato, não é difícil constatar que “o homem contemporâneo vive sob a ameaça de um eclipse da consciência, de uma deformação da consciência e de um entorpecimento ou de uma ‘anestesia’ das consciências”.9

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Beato João Paulo II

Quem não escuta a voz de sua consciência nem reconhece o pecado, tampouco se lamentará por tê-lo cometido; qualquer pedido de perdão lhe parecerá desnecessário e até mesmo absurdo. É o que, segundo o Beato João Paulo II, acontece com o homem hodierno, o qual, mais do que nunca, “parece encontrar dificuldade em reconhecer os seus próprios erros”, além de ter grande relutância em dizer “arrependo-me” ou “tenho muita pena”.10 Segundo o mencionado Pontífice, esse endurecimento do coração “corresponde àquela realidade a que chamou Cristo ‘pecado contra o Espírito Santo'”.11

Agora, é precisamente na consciência onde se localiza o senso do pecado, o qual se caracteriza como uma “fina sensibilidade e uma perspicaz percepção dos fermentos de morte que estão contidos no pecado” 12 e se manifesta à maneira de um vivo e intenso sentimento de culpa quando ouvimos a voz da consciência que nos acusa de ter ofendido nosso Pai, Criador e Senhor. Não é uma opressiva sensação de temor ou de angústia, nem tampouco um mero conhecimento intelectual ou psicológico, mas um profundo e sereno pesar por não ter correspondido ao amor misericordioso de Deus.13

Mas quando se extingue a consciência moral, se obscurece o senso do pecado, como também o senso de Deus: “A debilitação da experiência de Deus se manifesta hoje no desaparecimento da experiência do pecado e vice-versa: o desaparecimento desta consciência afasta o homem de Deus”.14 Por este motivo, a Fé em Deus está hoje ameaçada. “Em vastas áreas da Terra a Fé corre o perigo de se extinguir como uma chama que deixa de ser alimentada. Estamos diante de uma profunda crise de Fé, de uma perda do senso religioso que constitui o maior desafio para a Igreja de hoje”.15

O pecado de nosso tempo: a perda do senso do pecado

Esta lamentável situação levou o Papa Pio XII a declarar, com palavras que se tornaram quase proverbiais, que “o pecado do século é a perda do senso do pecado”.16 Este fenômeno foi favorecido por diversas correntes intelectuais e ideologias de índole materialista e até militantemente anticristãs, bem como pelo ateísmo prático no qual vivem muitos católicos: “A perda do senso do pecado é uma forma ou fruto da negação de Deus: não só da ateia, mas também da secularista. Pecar não é apenas negar a Deus; pecar é também viver como se Ele não existisse, é apagá-Lo da própria existência diária”.17

Um fator que, segundo o Beato João Paulo II, contribuiu não pouco para a deterioração do senso do pecado radica-se nos erros e desvios em matéria de Fé e moral que surgiram no seio da Igreja.18

Afirmava o Pontífice que se passou do extremo de apontar o pecado em tudo ao extremo oposto de não percebê-lo em parte alguma; prega- -se um amor a Deus que exclui toda justa sanção; pratica-se um suposto respeito à consciência individual que evita o dever de dizer a verdade; o Sacramento da Reconciliação foi rebaixado a um aspecto puramente comunitário ou esvaziado de seu conteúdo, pela negação da realidade do pecado e de suas consequências, e até reduzido a uma mera consulta psicológica; não se insiste na necessidade da conversão, da prática da virtude e do combate ao vício.

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Bento XVI

Somem-se a tudo isso a confusão e o escândalo ocasionados em inúmeras almas pela discrepância de opiniões e de ensinamentos na teologia, na pregação, na catequese, na direção espiritual e até mesmo na Confissão, sobre sérias e delicadas questões do dogma e da moral, com a agravante do divórcio entre a Fé e a vida, a incoerência entre a doutrina e a prática, que se espalha entre os pastores e os fiéis e que o Concílio qualifica como “um dos mais graves erros de nossa época”.19

Eclipse de Deus

O obscurecimento da Fé e do senso de Deus poderia ser comparado a um dos mais assombrosos acontecimentos cósmicos, o eclipse do Sol. O filósofo Martin Buber o aplica a nossos dias, quando escreve que a “hora histórica que o mundo atravessa” assemelha-se à de um “eclipse da luz do céu”, de um “eclipse de Deus”.20

Valendo-se dessa analogia, Bento XVI observa que a cultura atual tende a excluir Deus ou a considerar a Fé como um assunto privado, sem repercussão na vida social; isto ocasiona o “eclipse de Deus”, o qual não é apenas um olvido, mas “uma verdadeira rejeição do Cristianismo e uma negação do tesouro da Fé recebida”.21

Esse eclipse de Deus ameaça destruir a própria existência do homem, pois, apagando-se o senso do pecado e o senso de Deus, que o fundamenta, o homem naufraga em seu egoísmo; crescem sem freios a ambição e a crueldade, extinguem- se os sentimentos de compaixão e afeto, o ter passa a valer mais que o ser, o bem- estar material e o prazer – mesmo o ilícito – se convertem no fim supremo da vida, tudo se reduz à eficiência econômica e ao consumo desordenado, e são relegados os valores mais profundos da existência – espirituais, morais e relacionais.22

Por fim, obscurecendo-se o senso de Deus, apaga-se também o próprio senso do homem: “Sem o Criador, a criatura não subsiste. […] Antes, se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece”.23

Os lamentáveis efeitos do eclipse de Deus e da perda do senso do pecado ensombrecem nossa época, pois, como adverte o Catecismo, “ignorar que o homem tem uma natureza lesada, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no campo da educação, da política, da ação social e dos costumes”.24

“Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor!”

 
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Administração do Sacramento da
Reconciliação na Catedral de
São Paulo e “Jesus Abençoando”
– Basílica de São Paulo
Extramuros, Roma
Otavio de Melo
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Gustavo Kralj

Nesta hora dramática, contudo, não devemos nos desanimar; brilha ainda a esperança em nosso mundo enfermo: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; sobre aqueles que habitavam uma região tenebrosa resplandeceu uma luz” (Is 9, 1). Essa luz é Jesus Cristo, o qual nos ensina que quem necessita de médico são os enfermos, não os sadios. E para isso Ele, nosso Divino Médico, veio ao mundo: para salvar- nos, a nós, pecadores, e levar-nos à conversão (cf. Mc 2, 17).

“Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor!”, cantamos na Vigília Pascal, porque, se são terríveis o pecado e suas consequências, imensamente mais é o que Cristo para nós conquistou com sua morte e gloriosa Ressurreição, de maneira que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20). Por isso a Igreja, constituída por Cristo como “sacramento universal de salvação”, 25 não cessa de instar aos pecadores que reconheçam seus pecados e acorram à fonte inesgotável da misericórdia, tal como o fizeram o filho pródigo e o bom ladrão, ou como aquela ditosa mulher que por sua compunção mereceu ouvir estas consoladoras palavras: “Seus numerosos pecados lhe foram perdoados, porque ela tem demonstrado muito amor” (Lc 7, 47). Não esqueçamos, entretanto, esta doce advertência: “Vai e não tornes a pecar” (Jo 8, 11).

Esse perdão misericordioso de Deus manifesta-se de modo especial no Sacramento da Reconciliação. Ali o próprio Jesus, na pessoa do sacerdote, espera para brindar- -nos a mancheias sua bondade e sua clemência. Só uma coisa é necessária: reconhecer com humildade que pecamos. “Quem confia em si mesmo e nos próprios sentimentos está como que cego pelo seu ‘eu’ e o seu coração se endurece no pecado. Ao contrário, quem se reconhece frágil e pecador confia em Deus e d’Ele obtém graça e perdão”.26

Mas se, apesar de tudo, a recordação da enormidade de nossos pecados nos perturba, em nossa consciência as culpas nos envergonham e a justiça de Deus nos faz estremecer, não nos deixemos abater pela angústia nem caiamos no abismo do desespero.27 Pelo contrário, recorramos sem demora a Maria Imaculada, Mãe do Senhor e nossa Mãe amantíssima, e Lhe supliquemos: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte”, com a certeza de que quem confia em seu poderoso auxílio nunca será abandonado.

1 PLATÃO. Diálogo Alcibíades o de la naturaleza del hombre. In: Obras Completas. Madrid: Aguilar, 1969, p.257.
2 JOÃO PAULO II. Reconciliatio et pænitentia, n.13.
3 BENTO XVI. Angelus, de 13/3/2011.
4 Cf. CCE 1869.
5 Idem, 390.
6 BENTO XVI. Caritas in veritate, n.34
7 SÃO TEÓFILO DE ANTIOQUIA. Ad Autolycum. L.I, c.2: MG 6, 1026-1027.
8 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n.16.
9 JOÃO PAULO II, op. cit., n.18.
10 Cf. Idem, n.26.
11 Cf. JOÃO PAULO II. Angelus, de 1/4/1979.
12 Cf. JOÃO PAULO II. Reconciliatio et pænitentia, n.18.
13 “Prefiro sentir a contrição dentro de minha alma, a saber defini-la”, ensina a Imitação de Cristo. L.I, c.1, n.2.
14 RATZINGER, Joseph. O caminho Pascal. São Paulo: Loyola, 1986, p.136.
15 BENTO XVI. Discurso aos participantes da reunião plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, de 27/1/2012.
16 PIO XII. Radiomensagem na conclusão do Congresso Catequético dos Estados Unidos, em Boston, de 26/10/1946.
17 Idem, ibidem.
18 Cf. JOÃO PAULO II. Reconciliatio et pænitentia, n.18.
19 CONCÍLIO VATICANO II, op. cit., n.43.
20 Cf. BUBER, Martin. El eclipse de Dios. Estudios sobre las relaciones entre religión y filosofía. Buenos Aires: Nueva Visión, 1984, p.25.
21 BENTO XVI. Mensagem para a XXVI Jornada Mundial da Juventude.
22 Cf. JOÃO PAULO II. Evangelium vitæ, n.23.
23 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, op. cit., n.36.
24 CCE 407.
25 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n.48.
26 BENTO XVI. Discurso aos participantes no curso sobre o foro interno, organizado pela Penitenciaria Apostólica, de 7/3/2008.
27 Cf. SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Homilía II en alabanza de la Virgen Madre. In: Obras Completas. 2.ed. Madrid: BAC, 1994, t.II, p.639.

(Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro/2013, n. 134, p. 21 – 25)

 
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