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Plinio Corrêa de Oliveira


O transatlântico e o cais
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 19/08/2019
 
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Atendendo o pedido de vários leitores, iniciamos neste número a publicação de recordações da infância e primeira juventude de Dr. Plinio, nas quais podemos distinguir os traços da formação de sua personalidade e de seu pensamento. Nesta palestra para jovens, descreve ele como foi surgindo em seu espírito a noção de que existia no mundo um enfrentamento de tendências, idéias e fatos, posteriormente explicitado em seu livro “Revolução e Contra-Revolução”.

Antes de evocar aqui alguns episódios e circunstâncias do meu passado, conviria uma breve explicação sobre o que tenho chamado de Revolução “A” e Revolução “B” ¹, ou seja, as duas modalidades fundamentais em que se poderia dividir a grande Revolução anti-cristã, cujos perniciosos efeitos vêm correndo o Ocidente há mais de cinco séculos.

Revolução tendencial e Revolução sofística

A Revolução “A” é ideológica e moral, marcando as instituições, os debates doutrinários, com um trabalho do espírito e da inteligência em todo seu empenho e toda sua força. É a Revolução nas idéias. Esta, por sua vez, pode ser dividida em duas fases: a “Revolução tendencial” e a “Revolução sofística”.

A tendencial se dá no fundo da mentalidade do homem: são seus ímpetos, seus anelos, seus desejos, algo de tão interno que se torna muito difícil descrever.

A sofística é o operar do espírito movido, quantas e quantas vezes, pela vontade de tomar posição nos problemas tendenciais no sentido da Revolução, a fim de enganar os homens. Assim como o caminho da lógica é a favor da verdade, o do sofisma é a favor do erro. Por isso eu a chamo de “Revolução sofística”.

Já a Revolução “B” não atua apenas nesse terreno espiritual das idéias e das doutrinas, mas trabalha modificando coisas concretas, instituições, leis, dando-lhes a fisionomia que quer, ou usando da força para transformar, derrubar, impôr ou repôr. É a Revolução nos fatos.

Minha primeira juventude e o fim da Grande Guerra

Passando então aos acontecimentos da minha primeira juventude, analisados sob o prisma das Revoluções “A” e “B”, veremos que o episódio marcante do período entre 1918 e 1930, no terreno tendencial, é um dos mais importantes da História: o fim da Primeira Guerra Mundial. Com ele, verificou-se a queda na Europa do que representava tradição, hierarquia, esplendor de vida, amor à beleza das formas, dos gestos e das atitudes. E com o declínio dessas tradições, simultaneamente, o advento da influência norte-americana.

A palavra “norte-americana”, cumpre salientar, não significa o que na realidade eram os Estados Unidos, mas o modo como apresentavam esse país à opinião mundial, sobretudo às opiniões européia e latino-americana. Fechavam-se os olhos para aspectos psicológicos do povo norte-americano bons ou não gangrenados pelos novos erros, e mostrava-se apenas o lado “moderno”, afetado amplamente pela Revolução. 

Os Estados Unidos eram a grande nação vencedora, que havia decidido em última análise quem ganhara a guerra: os aliados (liderados pela França e a Inglaterra), e quem a perdera: os impérios centrais (basicamente a Áustria-Hungria e a Alemanha). Eles chegaram à Europa em possantes navios transatlânticos, e desembarcaram nas costas da França em meio a jubilosas cantigas, tropas altamente mecanizadas, trazendo os primeiros tanques e canhões formidáveis, com um estoque de víveres e munições até então jamais visto.

Os soldados franceses e ingleses exaustos, marcados de cicatrizes, muitos deles gloriosos veteranos com várias medalhas, viram descer nas praias gaulesas aquela rapaziada “modernizada”, vitaminizada e alegre, indo para a guerra com otimismo, com mecânica, com dólares, e destruindo com força os obstáculos que se lhe opunham.

Então, aos olhos do mundo o quadro resultante dessa situação era este: a guerra travada entre nações briosas mas extenuadas pelo peso do passado, das revoluções e do combate, quando entram os Estados Unidos, ricos, jovens e saudáveis, decidindo o conflito e decretando como instalar a paz na Europa.

Mudança tendencial e novo tipo de homem

Com essa mudança na balança do equilíbrio mundial, houve também uma transformação no plano tendencial. Era como se alguém tivesse exclamado: “Tradição, passado, cultura, ideais, arquetipias, vós todos não sois nada! Pelo contrário, máquinas, saúde, negócios, vida alegre, trabalhosa mas produtiva e jovial, futuro, vós sois os Estados Unidos! Vós sois a utilidade, o prático, o terra-terra, viveis para esta vida. E vós, ó velhos europeus, não é com vossa arte, cultura e poesia, não é com a história de vosso passado nem com vossos monumentos que se resolverão os problemas de hoje. A prova é que vós não os solucionastes. A prova é que estais no chão, sem produzir em nome dessa tradição nada de novo. E mesmo quando alguma novidade realizam, fazem-no por uma ruptura com a vossa tradição, inteiramente gasta. Se quiserdes ainda reviver, aceitai em vós o enxerto do espírito yankee moderno, porque, por vós mesmos, não sois mais nada!”

Pelo influxo dessa voz, muito de quanto fora encanto do passado e levara os homens ao entusiasmo começa a desaparecer, e raia a aurora de uma outra época,de outro estilo e outro modo de ver as coisas. As riquezas do espírito, as arquetipias, as maravilhas que nos dariam vontade de fugir da Terra para pensar só nelas, tudo começa a ser posto de lado. No fundo, passam a se enfrentar dois tipos humanos. E essa confrontação tendencial foi vivivíssima na época de minha infância.

Tomada de Posição

Imagine-se uma criança de dez anos (como eu tinha) em 1918, quando terminou a Primeira Guerra. Ela se depara com os dois tipos humanos e movimentos que acabei de descrever, batendo à porta da alma dela e a solicitando. Ela vê que os outros também estão assediados por esses movimentos, e percebe que essa é a solicitação do século.

Como todo ente batizado, essa criança é visitada pela graça e, portanto, pela fé. À medida que vai maturando, compreendendo melhor a religião e tirando mais conseqüências da doutrina católica, cada vez mais ela é convidada a tomar uma posição.

Para falarmos em termos de impressões e recordações, e não diretamente de doutrina, deve se levar em consideração que não vivi essas circunstâncias no vácuo, mas em uma cidade, São Paulo; em uma determinada camada social paulistana, e num certo meio dentro dessa camada, porque todo homem existe concretamente.

Assim, eu vi esse grande problema religioso e metafísico que acabo de enunciar representado por situações e por pessoas; vi as contradições das personalidades que ora pareciam ser uma, ora outra dentro de um mesmo homem. Vi os extremistas de ambos os lados, e fui levado, pelo desejo de ser fiel à Santa Igreja, a me perguntar qual a posição verdadeira e procurar tomá-la. Desse modo fui arquitetando pensamentos, elucubrações, idéias cujo traço essencial se encontra em “Revolução e Contra-Revolução”, e mais ou menos em tudo quanto penso e faço.

Eu tive os olhos mais abertos para esse panorama que descrevi a partir do início da década de 20. Quanto demorou até que essas reflexões me levassem a tomar posição? Não saberia precisar. Aliás, posição eu comecei a tomar desde o princípio, porque, vendo o problema, já ia optando. Mas é claro que o divisava por lampejos, fragmentariamente, como quem distingue de longe um incêndio numa floresta: aqui uma chama que se levanta, depois outra mais adiante, sem perceber ainda que, por debaixo da ramagem, o fogo se alastra na floresta inteira.

É-me difícil dizer a idade em que notei o fogo dominando a floresta, e tive o desejo de fazer inteiramente o contrário da ação do incêndio. Pois eu era partidário de cada árvore, de cada capim. Era o inimigo de cada aumento de temperatura que pudesse avolumar a combustão. Antes de saber que o fogo consumia a floresta, eu inteiro era anti-fogo e pró-floresta.

Entretanto, até eu organizar bem as idéias mestras e os pensamentos essenciais, eu teria meus 15 ou 16 anos. Vê-se, portanto, que o trabalho se deu de um modo relativamente precoce e veloz, para uma matéria tão grande.

Quando foi, então, que amadureceu no meu espírito o conjunto de “Revolução e Contra-Revolução”, vinda a lume em 1959?

Talvez pelos anos 40 eu já estivesse com tudo pensado e pudesse escrever o livro, porém só o publiquei no primeiro instante em que me pareceu viável.

“Nasci na popa do navio, e quis rumar para o cais!”

Trata-se de considerar, agora, quais foram as impressões primeiras que determinaram na minha alma essas reflexões e pensamentos sobre a Revolução e a Contra-Revolução.

As impressões que alguém nas minhas condições podia ter eram de duas espécies diferentes. Umas, oriundas do relacionamento humano de pessoa a pessoa ou num ambiente social; outras vinham do contato com a natureza. A nota tônica, contudo, era dada pela impressão do convívio humano, que mostrava esse entrecho que da tradição romântica do século XIX e da Belle Époque do início do século XX contra o vento dito “norte-americano” que começava a soprar, e como os homens agiam em função dele.

Depois, eu confrontava essas impressões com a natureza. Então olhava para o céu, para o mar, para o rio, para a flor, enfim, para tudo quanto a criação apresenta e me perguntava: “Bem, fora dessa gente e dessa época, na obra de Deus eterno, no mato, na montanha, no rio, na vegetação, nos animais, esse problema tem ou não tem repercussão? Deus, o que quer? Mas, há um terceiro protagonista, mais importante que o convívio humano, mais belo que a natureza, e o ponto de ordenação e de equilíbrio de tudo: a Igreja Católica.

Os personagens do drama estão apresentados. Agora é o momento de a peça começar.

Eu observava a maioria das pessoas, rapazes de minha idade, outros meninos ou outras meninas, com a mentalidade comum do meu meio social. Percebi-as com ligeira nota voltada para o passado, de maneira que aquele meu meio seria tido por conservador. Na realidade, porém, ia se distanciando da tradição mais ou menos como alguém que entrou num transatlântico rumo à Europa se vai afastando do cais.

Alguns passageiros, quando o navio parte, estão na ponta dele vendo o mar abrindo-se à frente. Outros passageiros estão na parte de trás, dizendo adeus a quem ficou no porto. Uns e outros querem viajar. E uns e outros deixam o cais.

O mesmo transatlântico nos ia levando a todos, embora tivéssemos atitudes diversas. Digamos que nesse meu meio, a maior parte embarcara no navio que eu chamaria — com a ressalva já feita — de “norte-americano”. Essas pessoas diziam adeus para a tradição, jogando-lhe beijos, vendo-a cada vez mais distante, sem lhes passar pela cabeça de se jogarem dentro do mar e voltarem para a tradição. E assim o transatlântico ia deixando atrás o cais.

Eu nasci como passageiro na popa desse navio. Em certo momento tive de decidir, e Nossa Senhora me ajudou a tomar a decisão de me lançar dentro da água e rumar para as coisas abandonadas no cais e que era necessário resgatar.

Evidentemente, não é possível uma pessoa formar essa idéia sem ter olhado para o navio, sem ter observado os passageiros que estão na ponta, os que permaneceram entre a proa e a popa, sem olhar muito para o cais, sem ouvir descrições da terra para onde vai o navio. Há uma análise da situação antes de a pessoa dizer: “Não continuo!”

Dualidades e contradições

Como foi essa análise? O que me falavam os passageiros do transatlântico, daquele mundo moderno com suas contradições e influências diversas?

Chamava-me particularmente a atenção a dualidade de reações dos que ficavam entre a proa e a popa, vivendo da influência francesa e da “norte-americana”. A maioria das pessoas falava francês e inglês, sendo que este último idioma não era usado com vistas à Inglaterra, mas aos Estados Unidos. Volto a insistir, não os Estados Unidos reais, e sim aqueles admirados através das lentes deformadoras das câmaras cinematográficas de Hollywood.

Então, eu notava que as pessoas elogiavam modas e canções provenientes da França, usavam fórmulas de polidez criadas naquela nação e empregadas na vida corrente. Não raro, conversavam entre si em francês, procurando pôr na pronúncia todas as sutilezas e todas as delicadezas do espírito desse povo, nos vários matizes e nas diversas cores cambiantes com que a França rutila.

De vez em quando vinha, pelo contrário, a influência “hollywoodesca”,  e então as mesmas pessoas falavam inglês. Era notória a mudança do estado de espírito: quando se usava o idioma francês, procurava-se uma pronúncia nobre, delicada, exprimindo nuances em que a alma encontrava mil modos de se manifestar. Já quando se expressavam em inglês, sobre temas “hollywood”, não eram o matiz nem a alma que se exprimiam, mas as vontades do corpo, a fome, o gosto da velocidade, infelizmente também os assuntos contrários ao sexto e ao nono Mandamentos, etc. Era a matéria que falava, desprezando o espírito. E esta mudança se operava numa mesma pessoa!

Nesse sentido, lembro-me de uma discussão que presenciei entre uma senhora de idade madura e um velho tio dela. O mais curioso é que a senhora era católica, e o tio, ateu. Ora, este sustentava uma posição de bom espírito, enquanto ela — note-se o paradoxo dentro disso — tomava uma posição de mau espírito. Em certo momento o tio se zangou e disse:

— Pois olhe, eu acho que a minha idéia é a correta e acabou-se!

Ela respondeu num francês muito bem pronunciado:

— Monsieur, donc vous n’êtes pas à la page!

Quer dizer, “o senhor não está na página certa do livro. O vento soprou sobre ele e pôs outras páginas em foco”. Mas, o modo de dizer vinha carregado de cultura francesa e ela inteira se  “afrancesou” no momento de falar. Pouco antes, estava discutindo com um espírito “yankee” a favor da tese norte-americana. Ou seja, era como se uma pessoa substituísse a outra dentro da mesma pele, ao mudar de idioma! Vê-se aí o choque das personalidades.

A mudança dos comportamentos ao sabor das modas

O que se dava em relação aos idiomas, verificava-se também com os modos de ser. Por exemplo, até então, quando alguém se encontrava com uma senhora bem mais velha ou simplesmente 
madura, fosse parente íntima ou de fora do seu círculo social, osculava-se-lhe a mão para cumprimentá-la.

Essa deferência em relação às senhoras — um valor da cultura ocidental e européia — minguava diante de um mundo no qual essas começavam a não ser mais respeitadas, um mundo em que se iniciava o processo de masculinização do sexo feminino. Enquanto a senhora tradicional dava a mão a beijar sorrindo, a senhora “moderna” apertava a mão do outro, fitando-o nos olhos. O modo de rir, de vestir, de andar, de falar, de comer, o modo de pensar e o de ser variavam de matizes de uma senhora para outra.

Considerava-se muito feio, sobretudo para senhoras, usar a moda do ano anterior. O vestido démodé perdia todo o valor, não importando se fosse bonito. As mulheres estavam sempre de figurino em punho para se inteirar das mudanças da moda. Os homens, naturalmente com menos afã, acompanhavam também esse processo.

Assim os comportamentos se transformavam, e os passageiros do navio eram seres de épocas diferentes, do passado e do futuro, vivendo misturados e se influenciando, a maior parte sem perceber e sem se dar conta.

A posição da Igreja em face dessas mudanças

Eu era, então, um menino vivendo naquele mundo que passava por essas transformações. E me lembro que, às vezes, quando viajava para Santos (bem diferente da Santos de hoje!), agradava-me passear por suas praias grandes, olfateando e considerando todas as belezas possíveis do mar. Comprazia-me até com o cheiro da areia molhada e com o da maresia, com o rumor das ondas
desmanchando-se nas orlas da baía. Praia deserta, e a Revolução longe.

Na praia, um menino que pensa… E sente a contradição daquele aspecto do mar com toda a vida “hollywoodizada” que vinha se desenvolvendo. Sente a afinidade do panorama marítimo com o passado, mas percebe que algo nesse passado também não conduzia a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora, nem à Igreja Católica como Ela é. Quer dizer, nas tradições do século XIX e da Belle Époque nem tudo era bom odor, pois havia nelas uma espécie de entorpecente psicológico: o romantismo. Era um passado em que apareciam juntos, se quiserem, os heróis da Contra-reforma misturados com os românticos, como, por exemplo, Chopin.

“Diante da beleza, santidade e sabedoria da Igreja, vinha-me este pensamento: isso é a matriz de tudo”! (Igreja do Sagrado Coração de Jesus, São Paulo)

Que efeitos o conjunto desse panorama produzia em mim? Até que ponto eu me sentia chamado para o passado ou para outro foco de luz, fixo e eterno, ao qual não só não se trata de nunca abandonar, mas, pelo contrário, devemos nos aproximar cada vez mais dele, isto é, a Santa Igreja?

Como eu via a posição d’Ela em face daquelas transformações?

A Igreja não me parecia apenas representar a tradição mas a fonte, o modelo e o arquétipo da tradição, com o Santíssimo Sacramento, o altar-mor, os vitrais, aquela luminosidade difusa do recinto sagrado, a campainha que toca para ajudar a Missa, a torre, o sino que reboa para a população, o púlpito do qual um pregador fala para as ovelhas que o ouvem reverentes, os paramentos e, sobretudo, o conteúdo da Fé e o esplendor da Moral! Diante da beleza dos Sacramentos, da santidade, da sabedoria das leis da Igreja que eu ia conhecendo, vinha-me este pensamento: “Isso
é a matriz de tudo!”

Então, como estava Ela em relação a essas influências diversas do passado? O que era o passado? Uma sereia a mais para cantar o cântico da perdição? Ou trazia verdades consigo? No coro angélico do passado, cantavam mais sereias? Tradição e romantismo, mar e romantismo, menino e romantismo. Mar e tradição, menino e tradição. Eis uma “ponta de trilho” para outra reunião de lembranças… (Revista Dr. Plinio, Agosto/2003, n. 65, p.)

1 Dr. Plino usa o termo “Revolução” no sentido que lhe deu na sua obra “Revolução e Contra-Revolução”, publicada pela primeira vez em 1959.

 
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