No período que se seguiu à cirurgia só era permitido a Dona Lucilia tomar alimentos líquidos. Uma das primeiras refeições a lhe ser oferecida, por uma enfermeira com ares ditatoriais, foi uma sopa de miolos.
Ora, Dona Lucilia se sentia indisposta quando era obrigada a comer algo desse prato, por menor que fosse a quantidade. Com sua invariável suavidade e elevadas maneiras, perguntou de que era aquela sopa.
A enfermeira, compreendendo ter diante de si uma paciente muito delicada, e percebendo pela inflexão da voz sua incompatibilidade com aquele alimento, evitou lhe dizer a verdade, afirmando apenas tratar-se de uma comida indicada pelo próprio Dr. Bier.
Dona Lucilia, não contente, insistiu:
— A senhora sabe, eu me sinto muito incomodada com miolos. Não será disso a sopa?
A enfermeira, fitando-a nos olhos, afirmou então sem rodeios:
— É mesmo sopa de miolos, mas Dr. Bier deixou ordem expressa de que ela fosse servida à senhora.
Dona Lucilia renovou várias vezes sua recusa em tomá-la, sem com isso conseguir convencer a implacável enfermeira. Pouco após tê-la ingerido, começou a sentir intensas náuseas, o que deu origem a um súbito agravamento de seu estado de saúde.
Não demorou muito para a tirania se transformar em desespero. A pobre enfermeira, vendo as dramáticas consequências de seu gesto, procurou ato contínuo o médico de plantão.
Constatou, entretanto, haver ele pulado a janela para ir a uma festa, deixando completamente abandonados seus pacientes. Já quase sem saber o que fazer, recorreu a um médico de outro setor, a fim de que atendesse Dona Lucilia.
Ao amanhecer, na visita que fazia a todos os seus doentes, Dr. Bier verificou serem as condições de Dona Lucilia bem ruins, e quis então saber, com germânica exatidão, o que havia ocorrido. Esta, sem deixar de dizer a verdade em nenhum momento, evitou de acusar a enfermeira, livrando-a de uma justa punição.
Por detrás do cirurgião, a tirana primeiramente se colocou em postura de súplica, com as mãos postas, a implorar que Dona Lucilia não a fizesse perder o emprego. Tão logo se viu salva, desmanchou-se em manifestações de gratidão pelo nobre gesto de que fora objeto.
Contudo Dr. Bier, com espírito muito investigador, desconfiando de alguma falha no atendimento, não se deu por satisfeito e mandou chamar o médico responsável a fim de esclarecer a situação.
Esse fato deu lugar, mais uma vez, à insigne prática da virtude da caridade para com o próximo, da parte de Dona Lucilia.
Normalmente até pessoas bem-educadas seriam levadas a exteriorizar sua inconformidade, quer com o mau trato recebido da enfermeira, quer com a grave negligência do médico de plantão.
Mereciam estes, por certo, exemplar castigo, que talvez redundasse na expulsão de ambos daquele hospital, ainda mais em se tratando de uma das melhores instituições europeias no gênero. Constando tal falta na folha de serviços, estaria de algum modo prejudicada a carreira deles.
Tanto ao médico quanto à enfermeira não restaria outra alternativa a não ser trabalhar em alguma das numerosas colônias do Império Alemão, fosse a África do Sudoeste, fosse a África Oriental Alemã, ou qualquer ilha perdida no meio do Pacífico.
Com a candura que lhe era tão característica, Dona Lucilia voltou-se para seu afamado cirurgião e, sem especificar quem a assistira, disse:
— O médico esteve aqui.
E assim, contra seu próprio direito, salvou a situação daqueles que lhe deveriam ter dado o atendimento que seu estado de saúde exigia.