Evangelho

Mt 4, 12Tendo Jesus ouvido dizer que João fora preso, retirou-Se para a Galileia. 13Depois, deixando Nazaré, foi habitar em Cafarnaum, situada junto do mar, nos confins de Zabulon e Neftali, 14cumprindo-se o que tinha sido anunciado pelo profeta Isaías, quando disse: 15“Terra de Zabulon e terra de Neftali, terra que confina com o mar, país além do Jordão, Galileia dos gentios! 16Este povo, que jazia nas trevas, viu uma grande luz, e uma luz levantou-se para os que jaziam na sombra da morte”.

17Desde então, começou Jesus a pregar: “Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus”.

18Caminhando ao longo do mar da Galileia, viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, que lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores. 19“Segui-Me”, disse-lhes, “e Eu vos farei pescadores de homens”. 20E eles, imediatamente, deixando as redes O seguiram. 21Passando adiante, viu outros dois irmãos, Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam numa barca, juntamente com seu pai Zebedeu, consertando as suas redes. E chamou-os. 22Eles, deixando imediatamente a barca e o pai, seguiram-No.

23Jesus percorria toda a Galileia, ensinando nas sinagogas e pregando o Evangelho do Reino de Deus, e curando todas as enfermidades entre o povo.

I – Fim do regime da Lei e dos profetas

João Batista é um importante marco na História da salvação, pois com ele termina a antiga Lei e se inicia a nova.1 Até ele, encontramos o regime da Lei e dos profetas; a partir dele, abre-se a era do Reino dos Céus (cf. Mt 11, 12-13).

Figura única na História, adornada em vida de um prestígio incomparável, se levanta misteriosa e solene no encontro de ambos os Testamentos.2

Homem muito peculiar, a começar pela previsão de sua vinda, pronunciada pelos lábios de Malaquias (3, 1): “Eis que mando o meu anjo, e ele preparará o caminho diante da minha face. E imediatamente o Dominador que vós buscais, e o anjo do testamento que desejais, virá ao seu templo”.

Se sui generis foi o anúncio de sua aparição, menos singular não foi o de sua missão profetizada por Isaías (40, 3): “Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai na solidão as veredas de nosso Deus”.

Teve ele o grande privilégio de ser santificado pela voz da própria Mãe de Deus, estando ainda em gestação no claustro maternal de Santa Isabel: “Porque logo que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino exultou de alegria no meu ventre” (Lc 1, 44).

Seu nascimento, além de assistido por Maria, contou com a presença de belos fenômenos místicos que se difundiram “por todas as montanhas da Judeia” (Lc 1, 65), trazendo como efeito, no fundo do coração dos que ouviam seus relatos, a ponderação: “Quem julgas que virá a ser este menino? Porque a mão do Senhor era com ele” (Lc 1, 66).

Tal foi aquele acontecimento que seu pai, Zacarias, pôs-se a profetizar, confirmando as antigas previsões sobre o menino (cf. Lc 1, 67-79).

Depois de refugiar-se nos desertos “até o dia de sua manifestação a Israel” (Lc 1, 80), aparece realizando sua missão diante do povo que “o considerava como um profeta” (Mt 14, 5; 21, 26).

“E ia ter com ele toda a terra da Judeia e todos os de Jerusalém” (Mc 1, 5). “E as multidões interrogavam-no, dizendo: ‘Que devemos, pois, nós fazer?’ […] E foram também publicanos para ser batizados e disseram-lhe: ‘Mestre, que devemos fazer?’ […] Interrogavam-no também soldados…” (Lc 3, 10-14)

Sua presença, suas palavras e até mesmo a forma de vida por ele adotada, colocavam “o povo em ansiosa expectativa e pensando, todos, se seria ele o Messias” (Lc 3, 15), a ponto de ver-se na contingência de afirmar categoricamente aos sacerdotes e levitas enviados pelos judeus de Jerusalém para interrogá-lo: “Não sou eu o Messias” (Jo 1, 20).

E mais tarde a voz de Cristo assim o classificaria: “Um profeta? Sim, vos digo Eu, e ainda mais do que profeta” […] “Em verdade vos digo que entre os nascidos de mulher não veio ao mundo outro maior que João, o Batista” (Mt 11, 9.11).

A prisão desse varão, o Precursor, tomado em plenitude pelo Espírito Santo (Lc 1, 15), determina o fim do regime da Lei e dos profetas e o começo da pregação sobre o Reino dos Céus, conforme veremos na Liturgia deste III Domingo do Tempo Comum.

II – Jesus Se retira para a Galileia

12Tendo Jesus ouvido dizer que João fora preso, retirou-Se para a Galileia.

Entre o jejum e as tentações de Cristo no deserto e a prisão e martírio do Batista – que São Mateus contará detalhadamente mais adiante (Mt 14, 3-12) – decorre um lapso de tempo de alguns meses, durante o qual Jesus exercita seu primeiro ministério nas terras da Judeia e Samaria. O Evangelista São João é o único que nos faz conhecer essa lacuna deixada pelos sinópticos.

Jesus Cristo, depois dos quarenta dias que passou no deserto, voltou para onde estava o Batista, pregando às margens do Jordão. Ao vê-Lo, João testemunha que Aquele é o Cordeiro que vem destruir o pecado no mundo, e alguns discípulos começam a seguir Jesus. Este vem com eles para a Galileia, onde opera seu primeiro milagre em Caná; dali parte para Cafarnaum; depois de poucos dias volta à Judeia para celebrar a páscoa. Prega e opera alguns milagres em Jerusalém, o que dá ocasião ao colóquio noturno com Nicodemos. Durante alguns meses continua pregando nas regiões da Judeia e, nessa ocasião, é preso o Batista. Por este motivo, empreende Cristo sua volta à Galileia, passando pela Samaria (Jo 1, 29–4, 3).

São João Batista foi entregue ao tetrarca Herodes Antipas pelos escribas e fariseus, como insinua o mesmo Cristo mais adiante (Mt 17, 12). É esta a razão pela qual Cristo foge para a Galileia, apesar de esta província estar sob o domínio de Herodes, inimigo do Batista. Os fariseus da Judeia ficavam muito incomodados – como adverte São João (4, 1) – pelo fato de os discípulos de Jesus serem mais numerosos que os do Batista, e teriam aproveitado, sem dúvida, qualquer ocasião favorável que se lhes apresentasse para pôr também Cristo nas mãos de Herodes.3

Conduzido pelo Espírito Santo

Como podemos comprovar, pelos Evangelhos, Jesus era conduzido pelo Espírito e, por um sopro d’Ele, Se retira para a Galileia. Não por temer o martírio, mas por não haver ainda chegado sua hora.

É o próprio Espírito Santo que nos inspira sabiamente a escolher os tempos e os lugares. Ele é quem nos ensina quando devemos fugir das perseguições ou afrontá-las, em quais momentos temos obrigação de falar ou de calar, de manifestar-nos a todos ou de nos recolher.

Se fôssemos inteiramente flexíveis aos sopros da graça do Espírito Santo, maravilhas sairiam de nossas mãos para a glória de Deus e da Santa Igreja, o bem dos outros e a santificação de nossas almas.

Infelizmente, com raras exceções, a humanidade se move, ao longo da História, muito mais pelo interesse pessoal, pela ambição, pela inveja, pelo amor-próprio, pela vaidade, pelo prazer, em uma palavra, pelo pecado. Quão grande desperdício de dons, virtudes e graças, do qual se prestará contas diante do juízo de Deus!

Jesus, muito pelo contrário, retira-se para a Galileia a fim de ali começar sua vida pública, com suas primeiras pregações, confirmadas por prodigiosos e profusos milagres, ilustradas por insuperáveis parábolas. Ali estabeleceu o centro de sua missão.

Oh feliz Galileia! Tomara soubésseis tirar todo o proveito de tão excelsa circunstância! Oh odienta Jerusalém, oh maldosa Judeia, vós perseguis o Precursor e perdeis os benefícios da presença do Salvador.

Justamente debaixo desse prisma é que se cifra a minha verdadeira felicidade, corresponder com perfeição aos toques da graça ou rejeitá-los. Eu devo temer a Jesus que passa e não retorna…

Razão sobrenatural: levar o remédio onde mais grave era o mal

13Depois, deixando Nazaré, foi habitar em Cafarnaum, situada junto do mar, nos confins de Zabulon e Neftali…

A propósito desse versículo, o próprio Maldonado chegou a equivocar-se, julgando haver duas Galileias.

Ao expor sua observação, o Revmo. Pe. Luis María Jiménez Font, S.J., com muita precisão desfaz o engano em nota ao pé da página, nestes termos:

O autor [Maldonado] faz uma distinção desnecessária. Não havia mais que uma Galileia, governada por Herodes. Cristo Se retirou a Cafarnaum, onde podia viver sem perigo, porque estava na fronteira da tetrarquia de Filipo.4

Como claramente se deduz, foi por motivos ocasionais que Jesus “Se retirou” para Cafarnaum. Entretanto, pode-se afirmar, com segurança, que nada se passava na vida do Salvador sem ter grandes razões como causa.

De imediato, percebe-se não ser útil para a vida pública a manifestação de sua divindade, na cidade de Nazaré. Jesus a escolheu para as décadas de sua fase oculta, devido a seu recolhimento, paz, pequenas proporções geográficas e população restrita.

Não era, porém, própria para a difusão em grande escala da semente da Boa-Nova. Ademais, “ninguém é profeta em sua própria pátria”, conforme Ele mesmo repetiria aos seus concidadãos, basta ver o modo como foi expulso daquela cidade.

Um motivo mais sobrenatural levou Jesus a tomar este caminho:

Começa Jesus a evangelizar as regiões por onde tivera início a defecção de Israel. Demonstra com isso sua misericórdia e sabedoria, levando o remédio onde mais grave era o mal, servindo-Se de uma cidade populosa, mas incrédula e preocupada só com os negócios humanos, para que dali se irradiasse a pregação do Reino de Deus.

Quis, assim, significar que quem mais necessita de remédio são os enfermos, não os sãos; e que nunca devemos resistir a nenhum apostolado sob pretexto de que o campo não está preparado para receber nosso trabalho.5

O povo que jazia nas trevas viu uma grande luz

14…cumprindo-se o que tinha sido anunciado pelo profeta Isaías, quando disse: 15“Terra de Zabulão e terra de Neftali, terra que confina com o mar, país além do Jordão, Galileia dos gentios! 16Este povo, que jazia nas trevas, viu uma grande luz, e uma luz levantou-se para os que jaziam na sombra da morte”.

A citação de Isaías feita por São Mateus nestes versículos é retirada do texto hebraico e por isso não são transcritas algumas palavras como constam em nossas traduções mais correntes:

No tempo passado foi levemente combatida a terra de Zabulon, e a terra de Neftali, e no tempo futuro serão cobertas de glória a costa do mar, além-Jordão, a Galileia das nações. Este povo, que andava nas trevas, viu uma grande luz; aos que habitavam na região da sombra da morte nasceu-lhes o dia (Is 9, 1-2).

Trata-se de uma belíssima profecia que se cumpre ao estabelecer-Se o Senhor em Cafarnaum.

De fato, segundo nos é descrito pelo segundo livro dos Reis (15, 29), Teglatfalasar, rei dos Assírios, invadiu várias regiões, entre as quais as terras de Zabulon e Neftali, ou seja, a porção citada nesses versículos de Mateus. Isto se deu por um castigo de Deus.

Foi assim devastada a Galileia e tomada pelos gentios, e daí seu nome: “Galileia dos Gentios”, localizada na zona limítrofe da Síria e da Fenícia, coalhada de pagãos.

Essa era a principal razão de se terem constituído seus habitantes em objeto de desprezo da parte do resto da nação, pois grande era a infiltração de gentios arameus, itureus, fenícios e gregos, que inevitavelmente se mesclavam com os judeus de raça, conforme vem narrado no primeiro livro dos Macabeus (5, 15): “E toda a Galileia estava cheia de estrangeiros, com o fim de nos perderem”.

Tratava-se, como já dissemos, de uma região rica em comércio e por isso atraente para os vários povos.

Ora, torna-se compreensível o quanto se corromperam as doutrinas e os bons costumes religiosos do povo eleito naquelas paragens, devido à forte e diversificada influência pagã, bem como o motivo pelo qual ele “andava nas trevas” e na “sombra da morte”.

Estavam os gentios sentados na região da sombra da morte – diz Crisóstomo – porque não tinham sequer uma partícula de luz divina que os iluminasse. Os judeus, que faziam as obras da Lei, mas não conheciam a justiça do Evangelho, estavam nas trevas. Todas elas são dissipadas pela “grande luz” do Messias. Não pode haver luz mais intensa e fixa, porque Jesus é a luz substancial: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8, 12). Não desconfiemos jamais de sua eficácia para chegar ao fundo dos espíritos mais cobertos de trevas pela infidelidade, pela heresia, pela ignorância, pela indiferença; e façamo-nos sempre, por nossa pregação e nossas obras, filhos dessa luz e colaboradores de sua ação iluminativa.6

III – A pregação do Reino dos Céus

17Desde então, começou Jesus a pregar: “Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus”.

São Marcos também nos deixou o mesmo relato nestes termos: “Completou-se o tempo, e aproxima-se o Reino de Deus; fazei penitência, e crede no Evangelho” (Mc 1, 15).

Enquanto um Evangelista costuma falar em “Reino dos Céus”, o outro se refere ao “Reino de Deus”. Discutem os autores sobre este particular, mas para nossos objetivos não nos convém discorrer sobre ele e, por isso, tomemos as duas expressões como sinônimas.

Já na famosa conversa noturna com Nicodemos, Jesus fizera menção ao Reino de Deus (cf. Jo 3, 3-5). Agora começa propriamente sua pregação pública sobre o tema.

É sabido o quanto os judeus esperavam por um reino político-social todo feito de glória para o povo eleito. Essa seria, para eles, a realização do Reino de Deus sobre a Terra.

É em Cafarnaum que Jesus começa a retificar esse equívoco nacionalista, o que Ele fará progressivamente por meio de pregações, parábolas e polêmicas, com uma insuperável força didática e de lógica.

Natureza espiritual e caráter universal do Reino

O método processivo para o estabelecimento do Reino anunciado pelo Divino Mestre se chocava com a concepção judaica de uma intervenção intempestiva do Todo-Poderoso, alçando aos píncaros a nação eleita.

Figuras como as da semente, do grão de mostarda e do fermento (cf. Mt 13, 24-33) demonstravam o lento passo a passo da evolução do Reino anunciado e trazido por Ele.

Ademais, o verdadeiro Reino é, sobretudo, religioso, sem possuir um fim político segundo o acen­tuado anseio da opinião pública daqueles tempos.

Esse Reino se estabelece em oposição ao de Satanás. “Se Eu, porém, lanço fora os demônios pela virtude do Espírito de Deus, é chegado a vós o Reino de Deus” (Mt 12, 28).

Não fará, portanto, uma oposição a César (cf. Mt 22, 21) e, por outro lado, não será nacional, mas universal: “Digo-vos, porém, que virão muitos do Oriente e do Ocidente e se sentarão com Abraão, Isaac e Jacó no Reino dos Céus…” (Mt 8, 11).

Sobre o versículo em questão, assim se exprime o grande exegeta Fillion:

Podia-se, pois, compreender o Salvador quando Ele fez ecoar através da Galileia o “Evangelho do Reino”, já que esta Boa-Nova fora anunciada há muito tempo, e que, recentemente, o Precursor a tinha proclamado com ardente zelo.

Mas era preciso corrigir o que havia tomado uma má direção no espírito do povo, aperfeiçoar o que era bom, erguer às esferas superiores o que ainda não fora revelado em toda a sua extensão e, assim, retornar ao magnífico ideal dos profetas e até ultrapassá-lo.

É por isso que – rejeitando com vigor as concepções mesquinhas e vulgares da maior parte dos seus compatriotas, desvinculando a noção de Reino de Deus das quimeras da escatologia judaica, protestando especialmente contra a pretensão dos fariseus e dos escribas de dar às esperanças messiânicas um aspecto puramente exterior e político, de maneira a fazer disso o monopólio de sua nação – Jesus insistiu incansavelmente na natureza espiritual e no caráter universal desse Reino.7 

A penitência abre as portas do Reino dos Céus

O Reino está próximo e, para nele penetrar, é preciso fazer penitência, humilhar-se, purificar-se. É a via segura para se obter a paz com Deus e consigo mesmo. Essa foi a condição colocada por Jesus, e por isso:

Não começou – diz o mesmo Crisóstomo – pregando as altas coisas da justiça da nova Lei, mas as coisas íntimas da retificação da vontade pela penitência. Por aí se entra no Reino dos Céus: abandonando os maus hábitos, retificando intenções e inclinações erradas, concebendo desejos de viver bem e tendo pesar de haver feito o mal. É então que se pode já vislumbrar o gozo do cumprimento da perfeita justiça: “Fazei penitência…” “Aproximou-se o Reino dos Céus…”8

IV – Vocação dos primeiros discípulos

18Caminhando ao longo do mar da Galileia, viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, que lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores. 19“Segui-Me”, disse-lhes, “e Eu vos farei pescadores de homens”. 20E eles, imediatamente, deixando as redes O seguiram. 21Passando adiante, viu outros dois irmãos, Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam numa barca, juntamente com seu pai Zebedeu, consertando as suas redes. E chamou-os. 22Eles, deixando imediatamente a barca e o pai, seguiram-No.

Pela narração de São João, tudo leva a crer que esses quatro Apóstolos já conheciam Jesus. Os outros três Evangelistas não fazem menção a esse prévio relacionamento.

O Precursor apontara a André e João a figura do Messias e, por isso, ambos O seguiram e, logo após, aproximaram Pedro e Tiago.

Um dia depois, fora chamado pelo próprio Jesus o Apóstolo Filipe, o qual, por sua vez, atraiu Bartolomeu (cf. Jo 1, 35-51). Portanto, de certo modo, eles já eram discípulos do Salvador quando se desenrolam os fatos descritos nos versículos acima.

Pedro e André lavavam as redes provavelmente depois de uma pesca infrutífera, caso Lucas se refira à mesma cena (cf. Lc 5, 1-11). A eles dirige o Mestre o convite em tom quase imperativo, o que faz prever conversas anteriores preparatórias a esse momento no qual se concretizava uma antiga promessa de fazê-los pescadores de homens.

A mesma determinação será usada com os outros dois irmãos, filhos de Zebedeu, pelo Divino Mestre.

A prontidão com a qual a dupla de irmãos abandona tudo, os dois últimos até ao próprio pai, indica bem o grau de intimidade existente entre eles e o Mestre, e o teor das conversas havidas até então.

Jesus trabalhava com divina sabedoria e zeloso cuidado, cada um para o exercício dessa robusta fé e arrojada decisão.

Alheias a essa tomada de atitude não deviam estar as orações silenciosas de Maria Santíssima. Ausente também não estava o esforço e o fogo de alma do Batista. Ele foi quem os congregara e os entregara ao Messias.

Esses fatores todos conjugados levaram os quatro primeiros discípulos a, com espírito inflamado, dar as costas a este mundo e lançar, não mais as redes, mas a si próprios, não nas águas, e sim no Reino dos Céus.

O Reverendíssimo Pe. Luís María Jiménez Font, S. J. faz um excelente comentário sobre essa passagem:

Parece que a vocação dos Apóstolos se passou da seguinte maneira: Cristo recebeu espontaneamente os que a Ele se juntaram, procedentes do discipulado do Batista – André e Pedro, João e Tiago –, e no primeiro retorno à Galileia, Filipe e Natanael, aos quais permitiu Jesus retomar suas atividades depois da cura do filho do régulo, acabada a primeira pregação na Judeia, pois o primeiro ministério do Senhor na Galileia parece que Ele o fez completamente só.

Quando já era conhecido na região, decidiu formalizar o ponto da colaboração alheia, e chamou novamente aqueles que no início O tinham acompanhado por devoção, para que O seguissem de modo definitivo e profissional, no dia da pesca milagrosa.9

V – Não tinha chegado a hora de Se manifestar como Filho de Deus

23Jesus percorria toda a Galileia, ensinando nas sinagogas e pregando o Evangelho do Reino de Deus, e curando todas as enfermidades entre o povo.

Depois de longas décadas no silêncio oculto de Nazaré, vemos agora o Salvador no pleno exercício de sua missão pública, pregando sobre o Reino de Deus, curando os enfermos e expulsando os demônios.

Não sabemos dizer quanto durou essa zelosa atividade apostólica, mas não seria exagerado supor ter ela se prolongado por vários meses.

É rica em conteúdo a apreciação feita pelos professores da Companhia de Jesus, a propósito desse versículo 23:

O Evangelista resume nestes poucos versículos a missão de Cristo na Galileia. Nos capítulos seguintes (5-7) ele nos vai apresentá-Lo primeiro como o grande doutor anunciado pelos profetas e, depois (8-9), como taumaturgo que opera toda classe de milagres para confirmar a verdade de sua doutrina. Aqui, em geral, nos diz que Jesus percorria os povoados da Galileia, sem dúvida acompanhado dos discípulos que acabava de escolher, ensinando a Boa-Nova – é este o significado da palavra Evangelho –, a qual era a próxima vinda do Reino dos Céus (v. 17).

Pregava, como anota o Evangelista, nas sinagogas. […] Pregava também, como insinua o Evangelista e veremos mais adiante, nos campos e nas praças.

Confirmava a verdade de sua doutrina com milagres, que eram ao mesmo tempo obras de caridade, curando toda espécie de enfermidades. Essas curas milagrosas eram uma das características do Messias anunciada pelos profetas, especialmente por Isaías (35, 5-6).10

A convicção de Jesus quanto ao seu papel de Messias jamais poderá ser posta em dúvida. Sua simples genealogia seria suficiente para demonstrar isso; nem se fale, então, sobre as revelações feitas por São Gabriel, tanto à Virgem Mãe quanto a Zacarias, a presença dos pastores no presépio, a visita dos Reis Magos e a própria resposta dada a Maria ao reencontrá-Lo no Templo: “Não sabíeis que é preciso Eu cuidar dos interesses de meu Pai?” (Lc 2, 49).

Esses fatos evidenciam quão grande e exata era a compenetração que Ele possuía em relação à sua missão.

Porém, se de um lado a consciência a respeito dos fins – imediato e último – era claríssima ab initio e nunca cresceu nem, menos ainda, diminuiu, sua manifestação aos outros foi progressiva. Aqui na Galileia encontramos o Divino Mestre numa fase inicial.

Era não só prematuro, mas até imprudente, revelar em todo ou em parte sua divindade. Só muito mais tarde – por volta de dois anos após o Batismo no Jordão – Pedro proclamará sua filiação divina, por pura revelação do Pai, e, em seguida, os Apóstolos receberão a ordem de manterem o assunto em sigilo.

A mesma norma de conduta será imposta aos demônios dos possessos (cf. Lc 4, 33-41, etc.) e aos próprios enfermos miraculados (cf. Mt 12, 16, etc.).

Se assim não fosse, o resultado seria incontrolável, devido à forte impressionabilidade das multidões a propósito de um Messias político. Haja vista a reação do povo após a multiplicação dos pães (cf. Jo 6, 14-15).

No último ano de sua vida pública, a manifestação será revestida de um esplendor exuberante. Mas, neste período da Galileia, “o Evangelho do Reino de Deus” é pregado pelo Filho do Homem a uma opinião pública com insuficiente fé para reconhecer a infinita grandeza do Filho de Deus.


1 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III, q. 38, a.1, ad 2.

2 Cf. TERTULLIANO, Quinti Septimii Florentis. Adversius Marcionem, l. IV, c. 33: PL 2, 471.

3 La Sagrada Escritura – Texto y comentario por Professores de la Compañía de Jesús. Madrid: BAC, 1961, pp. 49-50.

4 MALDONADO, P. Juan de, S.J. Comentarios a los cuatro Evangelios. Madrid: BAC, 1950, v. I, p. 223.

5 GOMÁ Y TOMÁS, Dr. D. Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v. II, p. 72.

6 Idem, ibidem.

7 FILLION, L CL. Vie de N.-S. Jésus-Christ. Paris VI: Librairie Letouzey et Ané, 1922, t. II, p. 127.

8 GOMÁ Y TOMÁS, Dr. D. Isidro. Ibidem.

9 In de MALDONADO, P. Juan, S.J. Ibidem.

10 La Sagrada Escritura – Texto y comentario por Professores de la Compañía de Jesús. Madrid: BAC, 1961, p. 54.