Para este XLIII Dia Mundial da Paz, escolhi o tema: Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação.
O respeito pela criação reveste-se de grande importância, designadamente porque “a criação é o princípio e o fundamento de todas as obras de Deus”1 e a sua salvaguarda torna-se hoje essencial para a convivência pacífica da humanidade.
Com efeito, se são numerosos os perigos que ameaçam a paz e o autêntico desenvolvimento humano integral, devido à desumanidade do homem para com o seu semelhante – guerras, conflitos internacionais e regionais, atos terroristas e violações dos direitos humanos –, não são menos preocupantes os perigos que derivam do desleixo, se não mesmo do abuso, em relação à terra e aos bens naturais que Deus nos concedeu.
Por isso, é indispensável que a humanidade renove e reforce “aquela aliança entre ser humano e ambiente que deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem estamos a caminho”.2
A criação, uma dádiva de Deus à humanidade
Na encíclica Caritas in veritate, pus em realce que o desenvolvimento humano integral está intimamente ligado com os deveres que nascem da relação do homem com o ambiente natural, considerado como uma dádiva de Deus para todos, cuja utilização comporta uma responsabilidade comum para com a humanidade inteira, especialmente os pobres e as gerações futuras.
Assinalei também que corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade, quando a natureza e, sobretudo, o ser humano são considerados simplesmente como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo.3
Pelo contrário, conceber a criação como dádiva de Deus à humanidade ajuda-nos a compreender a vocação e o valor do homem; na realidade, cheios de admiração, podemos proclamar com o salmista:
Quando contemplo o firmamento, obra de vossos dedos, a lua e as estrelas que lá fixastes: Que é o homem, digo-me então, para pensardes nele? Que são os filhos de Adão, para que Vos ocupeis com eles? (Sl 8, 4-5).
Contemplar a beleza da criação é um estímulo para reconhecer o amor do Criador; aquele Amor que “move o sol e as outras estrelas”.4 […]
Porventura não é verdade que, na origem daquela que em sentido cósmico chamamos “natureza”, há “um desígnio de amor e de verdade”? O mundo
não é fruto duma qualquer necessidade, dum destino cego ou do acaso, […] procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participantes do Seu Ser, da Sua sabedoria e da Sua bondade.5
O homem tem o dever de exercer um governo responsável da criação
Nas suas páginas iniciais, o livro do Gênesis introduz-nos no projeto sapiente do cosmos, fruto do pensamento de Deus, que, no vértice, colocou o homem e a mulher, criados à imagem e semelhança do Criador, para “encher e dominar a terra” como “administradores” em nome do próprio Deus (cf. Gn 1, 28).
A harmonia descrita na Sagrada Escritura entre o Criador, a humanidade e a criação foi quebrada pelo pecado de Adão e Eva, do homem e da mulher, que pretenderam ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-se como Suas criaturas.
Em consequência, ficou deturpada também a tarefa de “dominar” a terra, de a “cultivar e guardar” e gerou-se um conflito entre eles e o resto da criação (cf. Gn 3, 17-19).
O ser humano deixou-se dominar pelo egoísmo, perdendo o sentido do mandato de Deus, e, no relacionamento com a criação, comportou-se como explorador, pretendendo exercer um domínio absoluto sobre ela.
Mas o verdadeiro significado do mandamento primordial de Deus, bem evidenciado no livro do Gênesis, não consistia numa simples concessão de autoridade, mas antes num apelo à responsabilidade.
Aliás, a sabedoria dos antigos reconhecia que a natureza está à nossa disposição, mas não como “um monte de lixo espalhado ao acaso”,6 enquanto a Revelação bíblica nos fez compreender que a natureza é dom do Criador, o qual lhe traçou os ordenamentos intrínsecos a fim de que o homem pudesse deduzir deles as devidas orientações para a “cultivar e guardar” (cf. Gn 2, 15).7
Tudo o que existe pertence a Deus, que o confiou aos homens, mas não à sua arbitrária disposição. E quando o homem, em vez de desempenhar a sua função de colaborador de Deus, se coloca no lugar de Deus, acaba por provocar a rebelião da natureza, “mais tiranizada que governada por ele”.8
O homem tem, portanto, o dever de exercer um governo responsável da criação, preservando-a e cultivando-a.9 […]
Em busca do verdadeiro, do belo e do bom, e da comunhão com os outros homens
A questão ecológica não deve ser enfrentada apenas por causa das pavorosas perspectivas que a degradação ambiental esboça no horizonte; o motivo principal há de ser a busca duma autêntica solidariedade de dimensão mundial, inspirada pelos valores da caridade, da justiça e do bem comum.
Por outro lado, como já tive ocasião de recordar, a técnica
nunca é simplesmente técnica; mas manifesta o homem e as suas aspirações ao desenvolvimento, exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos condicionamentos materiais.
Assim, a técnica insere-se no mandato de “cultivar e guardar a terra” (cf. Gn 2, 15) que Deus confiou ao homem, e há de ser orientada para reforçar aquela aliança entre ser humano e ambiente em que se deve refletir o amor criador de Deus.10
É cada vez mais claro que o tema da degradação ambiental põe em questão os comportamentos de cada um de nós, os estilos de vida e os modelos de consumo e de produção hoje dominantes, muitas vezes insustentáveis do ponto de vista social, ambiental e até econômico.
Torna-se indispensável uma real mudança de mentalidade que induza todos a adotarem novos estilos de vida,
nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento.11
Todos somos responsáveis pela proteção e cuidado da criação
Deve-se educar cada vez mais para se construir a paz a partir de opções clarividentes a nível pessoal, familiar, comunitário e político. Todos somos responsáveis pela proteção e cuidado da criação. Tal responsabilidade não conhece fronteiras.
Segundo o princípio de subsidiariedade, é importante que cada um, no nível que lhe corresponde, se comprometa a trabalhar para que deixem de prevalecer os interesses particulares.
Um papel de sensibilização e formação compete de modo particular aos vários sujeitos da sociedade civil e às organizações não governamentais, empenhados com determinação e generosidade na difusão de uma responsabilidade ecológica, que deveria aparecer cada vez mais ancorada ao respeito pela “ecologia humana”.
Além disso, é preciso lembrar a responsabilidade dos meios de comunicação social neste âmbito, propondo modelos positivos que sirvam de inspiração.
É que ocupar-se do ambiente requer uma visão larga e global do mundo; um esforço comum e responsável a fim de passar de uma lógica centrada sobre o interesse egoísta da nação para uma visão que sempre abrace as necessidades de todos os povos.
Não podemos permanecer indiferentes àquilo que sucede ao nosso redor, porque a deterioração de uma parte qualquer do mundo recairia sobre todos.
As relações entre pessoas, grupos sociais e Estados, bem como as relações entre homem e ambiente são chamadas a assumir o estilo do respeito e da “caridade na verdade”.
Neste contexto alargado, é altamente desejável que encontrem eficaz correspondência os esforços da comunidade internacional que visam obter um progressivo desarmamento e um mundo sem armas nucleares, cuja mera presença ameaça a vida da terra e o processo de desenvolvimento integral da humanidade atual e futura.
Os deveres para com o ambiente derivam dos deveres para com a pessoa
A Igreja tem a sua parte de responsabilidade pela criação e sente que a deve exercer também em âmbito público, para defender a terra, a água e o ar, dádivas feitas por Deus Criador a todos, e antes de tudo para proteger o homem contra o perigo da destruição de si mesmo.
Com efeito, a degradação da natureza está intimamente ligada à cultura que molda a convivência humana, pelo que, “quando a ‘ecologia humana’ é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental”.12
Não se pode pedir aos jovens que respeitem o ambiente, se não são ajudados, em família e na sociedade, a respeitar-se a si mesmos: o livro da natureza é único, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a da ética pessoal, familiar e social.13
Os deveres para com o ambiente derivam dos deveres para com a pessoa considerada em si mesma e no seu relacionamento com os outros.
Por isso, de bom grado encorajo a educação para uma responsabilidade ecológica, que, como indiquei na encíclica Caritas in veritate, salvaguarde uma autêntica “ecologia humana”.
E consequentemente afirme, com renovada convicção, a inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases e condições, a dignidade da pessoa e a missão insubstituível da família, onde se educa para o amor ao próximo e o respeito da natureza.14
É preciso preservar o patrimônio humano da sociedade. Este patrimônio de valores tem a sua origem e está inscrito na lei moral natural, que é fundamento do respeito da pessoa humana e da criação.
Ecocentrismo e biocentrismo dão entrada a um novo panteísmo
Por fim não se deve esquecer o fato, altamente significativo, de que muitos encontram tranquilidade e paz, sentem-se renovados e revigorados quando entram em contato direto com a beleza e a harmonia da natureza.
Existe aqui uma espécie de reciprocidade: quando cuidamos da criação, constatamos que Deus, através da criação, cuida de nós.
Por outro lado, uma visão correta da relação do homem com o ambiente impede de absolutizar a natureza ou de a considerar mais importante do que a pessoa.
Se o Magistério da Igreja exprime perplexidades acerca de uma concepção do ambiente inspirada no ecocentrismo e no biocentrismo, fá-lo porque tal concepção elimina a diferença ontológica e axiológica entre a pessoa humana e os outros seres vivos.
Deste modo, chega-se realmente a eliminar a identidade e a função superior do homem, favorecendo uma visão igualitarista da “dignidade” de todos os seres vivos.
Assim se dá entrada a um novo panteísmo com acentos neopagãos que fazem derivar apenas da natureza, entendida em sentido puramente naturalista, a salvação para o homem.
Ao contrário, a Igreja convida a colocar a questão de modo equilibrado, no respeito da “gramática” que o Criador inscreveu na Sua obra, confiando ao homem o papel de guardião e administrador responsável da criação, papel de que certamente não deve abusar, mas também não pode abdicar.
Com efeito, a posição contrária, que considera a técnica e o poder humano como absolutos, acaba por ser um grave atentado não só à natureza, mas também à própria dignidade humana.15
A salvaguarda da criação e a realização da paz estão intimamente ligadas entre si
Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação. A busca da paz por parte de todos os homens de boa vontade será, sem dúvida alguma, facilitada pelo reconhecimento comum da relação indivisível que existe entre Deus, os seres humanos e a criação inteira.
Os cristãos, iluminados pela Revelação divina e seguindo a Tradição da Igreja, prestam a sua própria contribuição. Consideram o cosmos e as suas maravilhas à luz da obra criadora do Pai e redentora de Cristo, que, pela Sua morte e ressurreição, reconciliou com Deus “todas as criaturas, na terra e nos céus” (Cl 1, 20).
Cristo crucificado e ressuscitado concedeu à humanidade o dom do Seu Espírito santificador, que guia o caminho da História à espera daquele dia em que, com o regresso glorioso do Senhor, serão inaugurados “novos céus e uma nova terra” (2 Pd 3, 13), onde habitarão a justiça e a paz para sempre.
Assim, proteger o ambiente natural para construir um mundo de paz é dever de toda pessoa.
Trata-se de um desafio urgente que se há de enfrentar com renovado e concorde empenho; é uma oportunidade providencial para entregar às novas gerações a perspectiva de um futuro melhor para todos.
Disto mesmo estejam cientes os responsáveis das nações e quantos, nos diversos níveis, têm a peito a sorte da humanidade: a salvaguarda da criação e a realização da paz são realidades intimamente ligadas entre si.
Por isso, convido todos os crentes a elevarem a Deus, Criador onipotente e Pai misericordioso, a sua oração fervorosa, para que no coração de cada homem e de cada mulher ressoe, seja acolhido e vivido o premente apelo: Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação.