Certa vez um eminente biblicista europeu teve que fazer uma série de conferências sobre as Sagradas Escrituras, na América Latina. Durante a exposição, que era reservada para pessoas conhecedoras da matéria, sua eloquência e ciência do assunto fizeram com que um dos presentes exclamasse: “Mas, então, é impossível conhecer a Bíblia, pois é tal sua complexidade que só alguns poucos têm acesso a esta doutrina!”. Ao ouvir essa consideração, o palestrante comovido, retorquiu: “Não, os verdadeiros conhecedores da Bíblia são as crianças”.
O que pode ter feito com que este grande especialista mencionasse os “pequeninos”, aos quais pertence o “Reino dos Céus” (cf. Mt 19,13-15; Mc 10,13-16; Lc 18,15-17), como perfeitos intérpretes das Escrituras?
Hoje em dia, faz-se cada vez mais necessário um estudo científico nas diversas disciplinas, inclusive, dentro da própria teologia. No afã de buscar a verdade, inúmeros pensadores católicos empregam anos de estudos, a fim de precisar sua linguagem doutrinária e aprofundamento em pesquisas. Porém, isto não acontece com o comum das pessoas. A maioria dos fiéis cristãos não é capaz de matizar suas afirmações teológicas. No entanto, a atividade pastoral mostra como é impressionante o conhecimento da fé que possuem certos fiéis, muitas vezes não alfabetizados.
Também não é pouco incomum presenciar grandes divergências teológicas entre pessoas ou correntes de pensadores. Com quem estará a verdade teológica? Se uma das partes está correta, a outra deve estar equivocada, ou então ambas possuem partes incompletas de uma mesma verdade, ou, na pior das hipóteses, ambas conseguiram errar por caminhos diferentes.
O Papa Bento XVI aproveita sua homilia de primeiro de Dezembro de 2009, aos membros da Comissão Teológica Internacional, para se perguntar sobre esta questão do conhecimento científico em contraposição à leitura “não científica” da Bíblia. Ao comentar o encontro dos Magos do Oriente com os escribas (grandes especialistas das Escrituras), compara nossa época com a atitude destes últimos: “Existem grandes doutos, grandes especialistas, grandes teólogos, mestres da fé, que nos ensinaram muitas coisas. Penetraram nos pormenores da Sagrada Escritura, da história da salvação, mas não puderam ver o próprio mistério, o verdadeiro núcleo: que Jesus era realmente Filho de Deus, que Deus trinitário entra na nossa história, num determinado momento histórico, num homem como nós. O essencial permaneceu escondido!”.
O essencial permanece escondido quando aqueles que devem procurar os pormenores da verdade se esquecem da razão por que iniciaram sua pesquisa, e acabam permanecendo nos detalhes, afastando-se do núcleo. O pensamento teológico dos fiéis, por seu lado, detémse, muitas vezes, apenas nas verdades primárias, ignorando o desenrolar das questões doutrinárias.
Isto não quer dizer que a teologia entre em conflito com a visão daqueles que têm fé, mas não possuem a ciência teológica, nem que os teólogos são pessoas sem fé, o que seria um paradoxo; pelo contrário, as visões devem harmonizar-se. Os teólogos confirmam, através de seus estudos, aquilo que os fiéis, por ação do Espírito Santo, creem e defendem. Esta capacidade proporcionada pelo Espírito Santo é denominada por Bento XVI como “sensus fidei” (senso da fé), conforme suas palavras: “o Povo de Deus precede os teólogos, e tudo isto graças àquele sensus fidei sobrenatural, ou seja, àquela capacidade infundida pelo Espírito Santo, que habita e abraça a realidade da fé, com a humildade do coração e da mente. Neste sentido, o Povo de Deus é “magistério que precede”, e que depois deve ser aprofundado e intelectualmente acolhido pela teologia”.1
Na doutrina católica há verdades dogmáticas em que toda pessoa deve crer. Estas verdades foram pronunciadas pelo Magistério da Igreja, sob a força infalível do Sumo Pontífice. No entanto, há outras questões teológicas a respeito das quais o Magistério ainda não se pronunciou, mas os teólogos são unânimes em aceitar. Por fim, há questões inteiramente abertas para que os estudiosos busquem uma solução.
A este respeito, existe uma conferência – realizada cerca de cinquenta anos antes deste pronunciamento do Papa Bento XVI – do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, líder católico brasileiro, na qual esclarece este conceito de sensus fidei, inteiramente coadunado com a doutrina exposta pelo Sumo Pontífice. O eminente professor expõe a necessidade que a Igreja tem de distinguir para os fiéis entre o que é teologicamente certo e o que ainda é apenas hipótese. Muitas destas hipóteses servirão de alimento espiritual para os fiéis, obrigando os teólogos a aprofundar o tema discutido, para que, mais tarde, o Magistério infalível da Igreja defina o que é realmente correto. Neste sentido, o senso da fé no Povo de Deus será uma forma da própria Teologia e do Magistério caminharem: “Esse sopro de piedade dos fiéis, a respeito dos assuntos ainda não definidos pela Igreja, também faz caminhar a Teologia e o Magistério”.2
Para elucidar esta questão pode-se citar como exemplo a proclamação do Dogma da Imaculada Conceição de Maria. O Papa
Pio IX definiu através da Bula Ineffabilis Deus, em 1854, o que desde o século II palpitava nos corações católicos ainda de forma implícita: que a Bem-Aventurada Virgem Maria foi concebida sem o pecado original. Mas por que tanto tempo de espera?
A grande dificuldade encontrada pelos teólogos no decorrer dos tempos era de harmonizar a Redenção Universal de Cristo com a Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Se a Virgem Maria tivesse sido concebida sem o pecado original, a Redenção de Cristo já não seria mais Universal.
Dr. Plinio em conferência para jovens na década de 80 |
Grandes personalidades da teologia, como São Tomás de Aquino, diante de tal complexidade preferiram não definir uma posição, a fim de evitar precipitações. Mas o entusiasmo do Povo de Deus obrigou a que diversos teólogos estudassem a fundo o assunto. E, realmente, foi difícil, pois grandes teólogos chegaram a defender posições radicalmente opostas.
Ao mesmo tempo em que o Espírito Santo sopra na alma dos fiéis este entusiasmo por uma verdade teológica, não pode abandonar os teólogos, os quais terão a obrigação de levar adiante a discussão. No caso concreto do Dogma da Imaculada Conceição, a inspiração foi dada ao Beato João Duns Escoto, cuja inteligência lúcida e facilidade de aprofundamento teológico lhe valeram o título de “Doctor Subtilis” (Doutor Sutil). Ele tentou explicar a imunidade do pecado original em Nossa Senhora com a expressão “Redenção preventiva”, “segundo a qual a Imaculada Conceição representa a obra-prima da Redenção realizada por Cristo, porque precisamente o poder do seu amor e da sua mediação obteve que a Mãe fosse preservada do pecado original. Por conseguinte, Maria é totalmente remida por Cristo, mas já antes da concepção”.3
Há duas formas de redimir um cativo, segundo o Fr. Royo Marín; uma é pagar o resgate para libertá-lo do cativeiro no qual padece (redenção liberativa); outra é antecipar o pagamento antes que vá como cativo (redenção preventiva). Esta última é a situação de Nossa Senhora.4
Como é bonita a resolução teológica. Ela define e explica o que os fiéis sentiam em seu interior. Este sensus fidei é como uma bússola que indica o caminho a percorrer, mas é o labor dos teólogos que vai mapear todo o percurso. Isto mostra como a fé e a teologia se completam, e como afirma o Prof. Plinio: “O perfeito seria as coisas passarem-se de maneira a os fiéis terem verdadeira apetência pelo dogma, à semelhança do Concílio de Éfeso, quando o povo saiu às ruas clamando e dando vivas à Maternidade de Nossa Senhora”.5
1 BENTO XVI. Audiência Geral. Quarta-feira, 7 de Julho de 2010.
2 OLIVEIRA, Plinio Corrêa de. O desenvolvimento da Teologia e o sensus fidelium. Revista Dr. Plinio. Ano XII. N. 149. Agosto de 2010, p. 4.
3 BENTO XVI, Op. Cit.
4 Cf. Apud DIAS, João S. Clá. Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado. São Paulo: Artpress, 1997, p. 346.
5 OLIVEIRA, Op. Cit.
(Instituto Teológico São Tomás de Aquino / Instituto Filosófico Aristotélico-Tomista / Retrospectiva 2010)