Mt 28, 16Os onze discípulos foram para a Galileia, para a montanha que Jesus lhes tinha designado. 17Quando O viram, adoraram-No; entretanto, alguns hesitavam ainda. 18Mas Jesus, aproximando-Se, lhes disse: “Toda autoridade Me foi dada no Céu e na Terra. 19Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. 20Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo”.

Os poucos versículos do Evangelho do XI Domingo do Tempo Comum são de fácil compreensão e tornam dispensáveis longas digressões para aprofundar seu significado.

Mas é de capital importância, para melhor degustar o relato de São Mateus no final de seu Evangelho, conhecer bem exatamente as causas que levaram Jesus a afirmar aos Apóstolos: “Toda autoridade Me foi dada no Céu e na Terra”. Ou seja, o porquê coube a Ele, enquanto Filho do Homem, conferir aos Apóstolos o poder oficial de ensinar a todas as nações e batizá-las em nome da Santíssima Trindade.

Para isso, antes de entrarmos nas considerações sobre esse trecho de São Mateus, discorramos sobre importantes premissas do Evangelho de hoje.

I - As premissas

A transformação das mentalidades

Com a acentuada e crescente decadência moral dos últimos tempos, paulatinamente vão se transformando as mentalidades, e passam a vigorar novas normas, insurgindo-se contra as eternas estabelecidas por Deus.

Dando largas às suas paixões e vícios, numa progressiva via de deterioração dos princípios morais mais profundos, os homens contemporâneos chegam a dizer “em seus corações: o Senhor não faz bem nem mal”;1 e acabam por eleger para si máximas relaxadas de vida: “Tudo é permitido… É proibido proibir”.

Ora, se nós abrirmos os Evangelhos, constataremos que não foi essa a conduta de Jesus e nem sequer por aí rumaram seus conselhos. Muito pelo contrário, o Divino Mestre afirmou: “Seja a vossa linguagem ‘sim, sim, não, não’”.2

Jesus foi pedra de escândalo

Durante sua vida pública, Cristo dividiu os campos entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio. Assim o mostrou, por exemplo, São Beda, o Venerável, ao afirmar:

Quando Jesus pregava e prodigalizava seus milagres, as multidões eram tomadas pelo temor e glorificavam o Deus de Israel; mas os fariseus e escribas acolhiam com palavras carregadas de ódio todos os ditos que procediam dos lábios do Senhor, como também as obras que realizava.3

Já ao ser o Menino Deus apresentado no Templo, Maria ouviu de Simeão estas palavras: “Eis que Ele está posto para ruína e ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição”.4

O fato de Jesus ter sido pedra de escândalo é uma das causas de O terem odiado e de O tratarem como o Homem mais rejeitado da História. Esse escândalo deu-se, sinteticamente, por três razões.

1. Por sua humildade e grandeza. A Pessoa Divina de Jesus une em Si dois extremos opostos: a humildade e a grandeza.

Que o Messias nascesse em uma gruta, talvez ainda fosse aceitável para o orgulho humano, mas morrer na Cruz… Era levar esta virtude até limites inconcebíveis.

De outro lado, Cristo, de dentro de sua inferior condição humana, demonstrou seu domínio sobre as enfermidades e a própria morte, sobre os mares, os ventos e as tempestades, causando espanto até aos seus mais íntimos.

É-nos fácil compreender a humildade, mas vê-la harmonicamente subsistir com a grandeza, num mesmo ser, choca nossa débil inteligência.

Entretanto, Jesus nos chama à prática dessas virtudes opostas: por um lado, estarmos convictos de nossa contingência; por outro, vivermos na plena compenetração de sermos, pelo Batismo, filhos de Deus.

2. Jesus, ademais, escandalizou por sua doutrina. Não só por expô-la com clareza e integridade totais, mas por ser Ele a própria Verdade em substância: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim”.5 Não é difícil compreender o espanto de muitos ao ouvir o filho do carpinteiro dizer isto!

Como afirma Donoso Cortés, cé­le­bre escritor do século XIX, o homem aceita verdades, mas tem dificuldade em admitir a Verdade. A acirrada polêmica de Jesus com os fariseus tinha em seu cerne essa problemática: apontava o Divino Mestre para o grave dever moral de adequar a vida e os costumes à Lei de Deus. Mas, sobretudo, convidava seus ouvintes a aceitá-Lo como fonte e substância de tudo aquilo que pregava.

Os fariseus eram hipócritas, condutores cegos, serpentes, raça de víboras, etc.,6 e em seu orgulho estavam resolvidos a nunca aceitar a Verdade. Daí a perseguição até a morte, movida por eles contra o Verbo Encarnado.

3. Por fim, Jesus escandalizou por sua santidade:

A condenação está nisto: A luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, por­que as suas obras são más. Porque todo aquele que faz o mal, aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de que não sejam reprovadas as suas obras.7

 

Ainda hoje – e assim será até o dia do Juízo – o pecador, em sua concupiscência, tem horror ao justo pois, à luz da vida deste, dá-se conta da maldade e feiúra do vício que abraçou, e não querendo abandoná-lo, procura destruir ou denegrir o símbolo que o censura.

A verdadeira santidade consiste em conhecer a Verdade, amá-la e praticá-la, ainda que isto possa levantar incompreensões e até rejeição. Disto Ele nos deu pungente exemplo no consummatum est, do alto da Cruz: de sinal de escárnio e de ignomínia, ela foi transformada pelo Redentor em trono de honra, poder e glória.

Na rejeição está a origem de seu poder

Terminadas estas considerações, voltamos a nos perguntar: onde encontrar a base dessa onipotência dada ao Filho do Homem?

Enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Cristo é onipotente desde toda a eternidade. E enquanto Homem, participa desse poder na sua plenitude, devido à união hipostática entre a natureza humana e a divina na pessoa do Verbo.8

Não é a essa origem de seu poder régio e universal que Jesus faz referência no trecho do Evangelho de hoje, pois afirma claramente: “Toda autoridade Me foi dada no Céu e na Terra”.

Este versículo tem estreita relação com a Realeza de Cristo por direito de conquista. Ou seja, pelo fato de ter redimido o mundo pela sua Paixão e Morte de Cruz.

Trata-se de um domínio que Lhe foi dado no tempo, e não daquele seu eterno, como tão claramente transparece em Daniel,9 Lucas10 e muito mais na Encíclica Quas Primas, de Pio XI:

Há realidade mais doce e consoladora para o homem que o pensamento de que Cristo reina sobre nós, não só por direito de natureza, senão, ademais, por direito de conquista, isto é, o direito da Redenção?

Eis o fundamento de “toda autoridade” entregue a Cristo-Homem: sua Paixão e Morte, a Redenção do mun­do.

Ora, foi pelo escândalo produzido por Jesus, sem a menor fímbria de respeito humano, que Ele foi rejeitado e crucificado. Pela aceitação humilde dessa total rejeição, fez-se objeto de tão grande mérito: de rejeitado, tornou-se onipotente.11 Por isso pergunta São Lucas: “Porventura não era necessário que o Cristo sofresse tais coisas e assim entrasse na sua glória?”12

II - Nós e o escândalo

O homem tem verdadeira ânsia de poder, mas procura-o por vias equivocadas.

A Redenção nos elevou, do estado de meras criaturas, à categoria de filhos de Deus e co-herdeiros de Cristo, e fez de nós verdadeiros templos de Deus.13 Esta qualidade adquirida no Batismo exige uma alta compenetração a respeito da dignidade e grandeza de nossa participação na vida divina.

Mas, de outro lado, somos concebidos no pecado original. Nossa natureza é débil, e por isso somos obrigados a reconhecer nossa contingência, aprendendo de Jesus a sermos mansos e humildes de coração.14

Falsa noção de humildade

Muito se tem insistido ao longo dos séculos sobre esta virtude, da qual Nosso Senhor é o modelo perfeito. As Escrituras estão repletas de conselhos a este propósito,15 e o próprio Divino Mestre recrimina a soberba arrogante do fariseu, estigmatizando-a em parábola, ao final da qual afirma: “quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”.16

Porém, devido a uma compreensão errônea do que seja a verdadeira humildade, alguns desvios se tornaram frequentes em nossos tempos, influenciando os gestos, as atitudes e até as vestimentas.

Para exemplificar, tratemos sobre o modo de vestir-se adotado nestas últimas décadas.

Parece ser orgulhoso quem usa roupas de acordo com sua categoria, sobretudo quando muito limpas e bem passadas. A despretensão consistiria, então, em ser desalinhado, trajar-se com grande descuido, ter os cabelos desgrenhados, etc.

Ora, São Tomás de Aquino afirma que, muitas vezes, não é por virtude que as pessoas se vestem mal, mas sim por desleixo. Segundo ele, devemos aplicar cuidado e diligência em nossa apresentação pessoal. E cita, a este propósito, uma frase de Santo Agostinho:

Não somente no esplendor e na pompa das coisas materiais pode haver jactância, mas também na sordície lamurienta, e tanto mais perigosamente quanto se apresenta, para nos enganar, com o pretexto de servir a Deus.17

O grande escândalo: denunciar o mal

A humildade mal-entendida, levada a seus últimos extremos, desemboca no juízo deturpado de certos contemporâneos nossos que chegam a afirmar ser orgulhoso quem denuncia o mal. Ou, dito de outra forma, o permissivismo moral que hoje alastrou-se por todos os povos e erigiu-se como lei absoluta só condena um único “escândalo”: delatar o mal.

Mais uma vez, o erro é desmentido pelo próprio Jesus. Ele não deixou de ser humilde quando acusou os fariseus: “Vós tendes por pai o demônio e quereis satisfazer o desejo de vosso pai”, nem quando “dirigindo-se à multidão e a seus discípulos”, vituperou-os com os apodos de hipócritas, insensatos e cegos, sepulcros caiados, raça de víboras.18

Com essa forma de proceder, poderia Jesus não escandalizar?

Eis a grande lição que nos dão as premissas do Evangelho de hoje: sejamos humildes de verdade, sem deixar a santidade de vida e de costumes, ainda que esta atitude produza escândalo nos outros. Jamais devemos nos esquecer de nossa condição de filhos de Deus.

III. O Evangelho

Analisemos agora, um a um, os versículos do Evangelho.

16Os onze discípulos foram para a Galileia, para a montanha que Jesus lhes tinha designado

Foram convocados os “onze”, pois o traidor já havia se suicidado. Jesus lhes dissera que os reencontraria na Galileia,19 porém, a referencia à montanha surge aqui por primeira vez e não se sabe ao certo qual terá sido ela. Alguns autores pensaram tratar-se do Tabor.

17Quando O viram, adoraram-No; entretanto, alguns hesitavam ainda.

O Espírito Santo ainda não havia descido sobre os discípulos conforme estava prometido, pois Jesus não tinha ido ao Pai até aquele momento.20 Por isso, “alguns hesitavam ainda”. Faltava-lhes libertarem-se de uma compreensão muito humana do Messias, que lhes toldou a verdadeira visão até a hora da Ascensão de Jesus ao Céu, levando-os a perguntar-Lhe nessa ocasião: “Senhor, porventura chegou o tempo em que vais restabelecer o Reino de Israel?”21

Quantos de nós não sofremos deste mesmo mal?

O fixarmos o melhor de nossa atenção exclusivamente nos aspectos comuns e aparentes de nossa existência nos conduz a não discernir Jesus que nos acompanha a cada passo. Hesitamos!

A todo momento, Jesus nos chama para d’Ele mais nos acercarmos. Mas se nos deixarmos, por assim dizer, hipnotizar por nossos afazeres, amizades, pertences – enfim, por tudo que nos rodeia – não daremos ouvido à sua voz.

18Mas Jesus, aproximando-Se, lhes disse: “Toda autoridade Me foi dada no Céu e na Terra”.

Evidentemente, não se refere Jesus neste trecho à sua natureza divina, pois, por esta tem poder absoluto desde todo sempre, sendo coeterno com o Pai. Trata-se, aqui, de uma comunicação da divindade à Carne, do Filho de Deus ao Filho da Virgem: a autoridade suprema, absoluta e infinita é conferida à Humanidade santíssima de Jesus.

São Paulo, escrevendo aos colossenses, tornou clara a essência desse poder:

Ele é a imagem de Deus invisível, o Primogênito de toda a criação. N’Ele foram criadas todas as coisas nos Céus e na Terra, as criaturas visíveis e as invisíveis. Tronos, Dominações, Principados, Potestades: tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele existe antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem n’Ele. Ele é a Cabeça do corpo, da Igreja. Ele é o Princípio, o primogênito dentre os mortos e por isso tem o primeiro lugar em todas as coisas. Porque aprouve a Deus fazer habitar n’Ele toda a plenitude e por seu intermédio reconciliar consigo todas as criaturas, por intermédio daquele que, ao preço do próprio Sangue na Cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na Terra e nos Céus.22

Ainda nesta passagem do Evangelho, é digna de nota a insuperável didática e senso de cerimônia do Ressuscitado. Vendo a hesitação de alguns e, ao mesmo tempo, para tornar mais solenes suas palavras, resolveu por bem pronunciá-las “aproximando-Se”.

“Ide, pois, e ensinai a todas as nações”

Revestido de todo poder, Jesus não pede, mas ordena: “Ide”. Assim procede não só para exercer sua autoridade, mas para conferir aos enviados (os Onze e seus legítimos sucessores) um caráter de oficialidade.

Os Apóstolos, por extensão e participação do poder do Redentor, após essa determinação, passaram a agir em nome do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo.

E qual será o raio de ação desse poder conferido à Igreja em seu nascedouro? Universal! Sim, Jesus deseja expandir seu Reino sobre todos os povos e nações.

A Sabedoria Eterna e Encarnada havia educado com esmero seus Apóstolos antes de lançá-los a mares mais agitados, começando por adestrá-los dentro dos limites da própria nação:

A estes Doze enviou Jesus, depois de lhes ter dado as instruções seguintes: “Não vades para entre os gentios, nem entreis nas cidades dos samaritanos, ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel”.23

Após a Ressurreição, já se encontram aptos a ensinar “a todas as nações”, cumprindo a ordem do Salvador.

19bBatizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo

Pela Teologia, sabemos ser a conversão fruto de uma graça eficaz, de iniciativa do próprio Deus.

Entretanto, por razões de altíssimo conteúdo ontológico, ligadas ao instinto de sociabilidade, Deus quer servir-Se de instrumentos humanos para converter as almas. Daí ter criado um método e, sobretudo, uma organização que se sintetizam neste versículo, ao proferir Jesus, de forma solene, a determinação de que uns ensinem os outros, sem acepção de pessoas ou de raças, conduzindo todos para a recepção do Batismo.

O Evangelho, enquanto mensagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, deve ser o caminho preparativo com vista à acolhida do neoconvertido no seio da Igreja.

20aEnsinai-as a observar tudo o que vos prescrevi.

Depois de batizado, o neófito deverá observar tudo o que foi prescrito pelo Divino Mestre. “A fé sem obras é morta”, diz São Tiago.24 Assim, é indispensável ele tornar sua vida e costumes de acordo com o Evangelho que ouviu e aceitou no seu coração.

Não basta, portanto, ter fé e ser batizado; para salvar-se é obrigatório cumprir os Mandamentos divinos. Essa prática virá sobretudo do amor, conforme diz São João: “Se Me amais, observareis os meus Mandamentos…”25

20bEis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo.

Antes da Paixão, Jesus prometera: “Não vos deixarei órfãos; voltarei a vós”.26.Mas agora, além de categórico, seu compromisso é permanente e mais substancial: “Estou convosco todos os dias, até o fim do mundo”.

Jesus certamente não Se refere à presença eucarística com exclusividade, pois já afirmara: “Porque onde dois ou três estão reunidos em meu Nome, aí estou Eu no meio deles”.27 Ou seja, trata-se de uma presença misteriosa e atraente.

Ele vivificará sua obra, a Igreja, animando-a e fortificando-a sem cessar. É a proclamação, segundo São Jerônimo, do triunfo da Igreja, pois Ele nunca Se afastará dos fiéis que n’Ele creem.


1 Sof 1, 12.

2 Mt 5, 37.

3 Hom. 15, De purificatione Beatae Mariae, PL 94, 79.

4 Lc 2, 34.

5 Jo 14, 6.

6 Cf. Mt 23, 13-33.

7 Jo 3, 19-20.

8 Suma Theologica, III, 59, 2.

9 Dn 7, 13-14.

10 Lc 1, 32-33.

11 Cf. Suma Theologica, III, 46 e III, 59

12 Lc 24, 26.

13 Cf. Rom 8, 17; II Cor 6, 16.

14 Cf. Mt 11, 29.

15 Veja-se, por exemplo: Col 3, 12; Ef 4, 2; Fil 2, 3; Jud 8, 16; Prov 15, 33; Prov 28, 12; Prov 22, 4; Miq 6, 8; I Pe 3, 8; Sof 2, 3.

16 Lc 18, 14.

17 Summa Theologica, II, II - q. CL XIX - 2.1.

18 Cf. Jo 8, 44 e Mt. 23, 1-34.

19 Cf. Mt 28, 10.

20 Cf. Jo 16, 7.

21 Act 1, 6.

22 Col 1, 15-20.

23 Mt 10, 5-6.

24 Ti 2, 26.

25 Jo 14, 15.

26 Jo 14, 18.

27 Mt 18, 20.